sábado, 10 de outubro de 2015

A partir de hoje sou 60tão

Dêem-me um aperto de mão,
mirem bem este meu rosto,
apalpem este meu corpo,
a partir de hoje sou 60tão

Estou como um melão que não foi comido
na época estival, nas festas de Agosto,
fiquei de parte, não fui escolhido,
mas ainda me podem tomar o gosto

Apalpem-me, cortem-me às talhadas,
sirvam-se das rugas e da pilosidade,
cheirem o meu suor, tragam-me carradas
de amor fora do prazo de validade

Dispam-se, dancem para mim o fandango,
cantem-me os parabéns na versão abreviada,
aquela versão que se canta assobiando,
depois comam e bebam do que houver na bancada,
enquanto eu fico a murmurar estes versos,
como se fossem ladainhas de terços:

Já não sirvo para colher,
já não dou para sementeira,
muito menos para comer,
já sinto o calor da lareira;

Mas ainda quero ser
um papiro para escrever,
um átomo para arder,
um sopro de amanhecer;

Um gelado a derreter,
muitos beijos a bailar,
um desejo a ansiar,
uma caneta a escrever;

Um coração a pulsar
e uma voz a provocar
com a manha de garoto
até ao último sopro

Dêem-me um aperto de mão,
a partir de hoje sou 60tão,
vou ter de fazer contas com o passado,
vou ter de somar o que fiz
e não devia ter feito,
ao que podia ter feito e não fiz,
e não fiz apenas porque não quis
e, quiçá, porque se o fizesse
ficaria cativo dos remorsos
que despertam quando lhes apetece,
são fortes os remorsos

Sim, vou ter de fazer contas com o passado,
mas, em vez de somar, vou antes subtrair,
vou subtrair ao que fiz e devia ter feito,
ao que não devia ter feito e fiz,
assim, ficarei apenas com o que fiz e devia ter feito

(estão confusos com a minha aritmética?
também eu,
nunca tive jeito para a aritmética, nem para a dialética)

Mas vou contar com o futuro,
sim, com o futuro que está sempre próximo,
conto, porque ainda estou vivo,
porque ainda me apetece buscar o tempo perdido,
não, não vou reler o Proust,
nem procurar divindades nas entranhas do meu fígado,
mas vou tentar gozar os prazeres dos deuses do Olimpo,
daqueles que, por se portarem mal, também tiveram uma vida efémera,
vou dormir, ler, escrever, comer, beber, et cetera

Vá lá,
dêem-me um aperto de mão,
dêem-me um bacalhau, um espadarte,
um pífaro, um carro de mão,
um palácio, uma obra de arte
uma enxada, um buraco no chão,
um pontapé, uma bofetada,
uma corda, um cordão,
uma gravata, um alfinete,
um arrependimento, uma vergastada,
uma concha, um búzio,
um livro, um torniquete,
uma contrição, umas orelhas de burro,
dêem-me, dêem-me uma fornada de pão,
dêem-me também uma estrada e uma paixão
para caminhar até à exaustão,
porque a partir de hoje sou 60tão

Mas se não me derem nada
não faz mal,
se calhar até é melhor
não me darem nada,
a genial Natália já me deu
tudo, ou quase tudo,
deu-me:

"um lírio e um canivete,
um barco e um chapéu,
um esquife feito de ferro,
um pente e um espelho,
um avião e um violino"

e continua a dar-me todo o seu verso,
a sua voz, o seu grito,
só ainda não me deu
"o animal que espeta os cornos no destino"

Obrigado por terem vindo