sábado, 20 de agosto de 2016

Desabafo absurdo mudo

Estou a ver os jogos olímpicos
do Rio de Janeiro
Calai-vos,
agora falo eu,
chegou a minha vez,
estou farto de vos ouvir,
de vos ler,
de vos ver a rir,
de vos ver a comer,
de vos ver a crescer
esbeltos
e a saber viver
por serdes mais espertos,
calai-vos e escutai-me,
agora falo eu

Sou um homem
adulto
e ainda tenho quase tudo,
tenho membros, abdómen,
coração, tripas, fígado
mais os outros miúdos,
tenho coluna, nervos, fibras,
músculos,
sim, tenho quase tudo,
e só não tenho tudo
porque não sou como o David
renascentista,
ou como o grego clássico
lançador do dardo,
Ai, gostava tanto de ser como eles,
gostava de ter um alegre e belo rosto
e uma exemplar postura
num entroncado e ajeitado corpo,
um corpo fino no traço e grosso
de osso,
mas não sou como eles,
os jogadores atletas;
sou assim:
cabeça grande e dura
em cima de um pescoço de troglodita
que segura
uma papada de unto
debaixo de uma boca sempre faminta
a reclamar presunto
com uma ingénua expressão de caricatura
que não merece uma moldura,
nem uma escultura

Mas, ao menos sei falar e contar,
(dois e dois são cinco,
sei mesmo contar)
e quanto mais conto
mais me apetece mastigar palavras
servidas a quente directamente do forno,
umas para ler, outras para escrever nas horas mortas
em folhas de papel ou de couves trincadas pelas larvas
das hortas
que eu mastigo, puras ou em migas,
depois de as lavar e cozer ao lume
em grandes panelas que exalam um perfume
de roupas velhas e provocam intrigas
no meu intestino,
para, de súbito,
um bafo absurdo
o deixar tranquilo

De seguida, arregaço as mangas
e aproveito para puxar o lustro
ao orifício das entranhas
da minha carapaça
que adora o luxo
de ser uma carraça
vestida com pele de urso
branco
que vesti por engano

Pronto, já desabafei,
foi um desabafo absurdo mudo,
agora calo-me e volto ao meu mundo,
ao meu mundo real,
sim, volto ao mundo real,
ao mundo dos reis,
porque eu sou Rei