sábado, 28 de maio de 2016

Encontro com a morte

Quiseram o fado
e a minha sorte
que tivesse há pouco encontrado
a senhora morte
É uma senhora de figura humanóide
esguia e vestida de preto
parecida com um espermatozóide
Tem cabeça pequena, muito pequena
Estava encostada ao gaveto
entre a empena
e a porta da enfermaria
onde eu dormia
Estive toda essa noite de quarentena
tinha alguém a olhar para mim
fixando no meu rosto
a luz de uma lanterna
Eu disfarçava não ser o alvo,
talvez não estivesse salvo,
sentia-me mal, muito mal
À beira da porta, branca como a cal
a morte sorria para mim
Mirei-a bem, voltou a sorrir
e aí tive a certeza de que era o seu alvo
Vi-lhe os dentes manhosos de marfim,
manteve-se direita e eu não podia fugir
estava colado à cama como as flores
jazem num cuidado jardim
inundando-o de cores

Pelos vistos não morri
nessa noite
De manhã o meu vigilante
levantou-se afoito
e disfarçou, saiu do quarto elegante
como quem diz
"Terminou o meu turno, despego às oito;
ele respira bem apesar de ainda ofegante,
ainda não foi desta que este esticou o dito"

A morte esfumou-se com os primeiros fluxos
das luzes do dia
que entravam por um buraquito
da janela do hospital dos Capuchos
mas como estava muito aflito
decidiram os médicos bruxos
que eu deveria ir de maca
para o hospital de Santa Marta
com a minha carcaça
entubada, sem dor
para continuar a respirar
ao ritmo de um ventilador

Nas noites seguintes
continuei a resistir
ao sorriso dos dentes de marfim
da figura de preto sinistra
que continuava a sorrir para mim
e não me largava
nem no Santa Marta

Safei-me
com grandes sequelas,
queimei as velas
que orientam e sustêm
os músculos
do meu corpo

Do lado esquerdo
estou como morto
mas já perdi o medo
de por enquanto não sentir qualquer progresso
Adeus, caros leitores,
até ao meu regresso