domingo, 27 de dezembro de 2015

Poço do Bispo

Comove-me o Poço do Bispo,
comove-me o seu largo central
onde encontrava o Cândido à hora do almoço,
eu interrompia as lides no Terminal TIR da Matinha,
ele interrompia o fabrico de uma metralhadora
modelo Fábrica Braço de Prata, vulgo FBP,
nesse largo ainda se vêem o relógio do José Domingos Barreiro,
que há muito dá a mesma hora,
o desenho das pipas do José Maria da Fonseca
e o salão de baile do Clube Oriental de Lisboa,
onde eu bailava marchas e via jogar a sueca

Comove-me a Rua Fernando Palha,
aí assistia à descarga de peixe e de mariscos
para armazéns frigoríficos,
por vezes ouvia "a Alfândega só atrapalha"

Comove-me o Palácio da Mitra
e a qualidade de vida
dos seus habitantes, quão rica
deve ser a vida num palácio!

Comove-me a ausência da casa
do António Sérgio,
era uma casa senhorial, provinciana,
tinha um alto piso térreo
e o primeiro andar com varanda,
foi arrasada
para dar lugar a nada

Comove-me ainda mais
a lembrança daquela figura de mulher curvada
que baixava à doca, quase sempre ao fim da tarde,
dizia-nos que esperava o seu filho
que tinha partido para defender o Ultramar,
mas ele já tardava
e perguntava-nos se o barco estaria a chegar,
"gostava tanto de o abraçar",
concluía ela num transe de loucura e de saudade

Comove-me o sempre velho Poço do Bispo

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Reflexões numa tarde de Natal

O mar
tem lá dentro um segredo
que não quer revelar,
é um mostrengo
que não se quer mostrar

O ar
tem lá dentro uma bolha
que não quer rebentar,
é uma rolha
que está sempre a rolhar

A chuva
tem lá dentro uma gota
que não quer esgotar,
está sempre rota
quando quer brotar

O tempo
tem lá dentro uma rosca,
está sempre a enroscar
e nunca fica tosca,
é ele a passar

O pensamento
tem lá dentro uma ilusão,
leva-o para aonde quer
menos para a razão,
é a essência de se ser

A idade
tem lá dentro a saudade,
dá-lhe para chorar
e para negar a vontade
de voltar a mamar

A morte
tem lá dentro o incógnito,
será o momento de acabar?
ou será o fim e o princípio
de outro ser a germinar?

A religião
tem lá dentro a justificação
para todas as premissas,
há 4200 religiões nesta civilização,
quero ir a todas as missas

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Noite de Natal

Nesta noite apetecia-me
ser menino,
um menino pequenino,
muito pequenino,
tão pequenino como o menino
que dizem ter sido gerado sem pecado
e que foi dado à luz numa gruta
aquecida pelo bafo
de uma vaca e de um burro
lá para os lados de Belém,
o seu pai já era velho
e chamava-se José,
a sua mãe não tinha idade e era virgem,
chamava-se Maria 

Sim, nesta noite apetecia-me
ser menino
como esse menino
que nasceu pobre numa noite como esta,
por sua causa,
alguém marcou na minha frágil testa
de inocente bebé
o sinal daquele artefacto pesado de fé,
de História e de dúvidas,
o sinal da cruz

Que viva esse menino,
esse menino Jesus,
que haja festa,
comam e bebam, não apaguem a luz
nem as fogueiras de Natal,
que haja desafogo e fartura,
não percam a festa
do nascimento de um menino angelical
feito de nuvens de algodão e de açúcar
e que nasceu numa noite como esta,
não, não percam a festa,
empanturrem-se de bacalhau e de peru
e não leiam nem ouçam as notícias
para não estragarem a festa
numa noite como esta,
noite longa e escura,
o sinal do solstício de inverno
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Feliz consoada para todos

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Chegou o Inverno

Hoje, o Sol
está mesmo em cima
do Trópico de Capricórnio
a derramar o seu fulgor cósmico
com o tesão
do solstício de Verão

Isto é,
o Sol está a pôr os cornos
ao Trópico de Câncer
e, como eu vivo a norte dos contornos
desse trópico,
vou ter que sobreviver
ao seu mau humor
e ao seu torpor melancólico
até que o Sol volte para ele
e o incendeie de luz, de calor,
de energia, de suor

E diz-me um amigo traiçoeiro,
vaidoso, fanfarrão
e cheio de dinheiro
- faz como eu,
voa para o Verão

Voa tu para o teu Verão,
eu fico, eu fico por cá
embrulhado no meu roupão
de angorá

Chegou o Inverno,
viva o Inverno

sábado, 19 de dezembro de 2015

Genocídio

Pois é, digo eu,
o Homem não se fartou, nem se farta
de progredir, de crescer,
é um prodígio
da natureza,
mas mata que se farta,
até pratica o genocídio
para garantir a pureza
da sua raça

Afinal, que raio de ser é este
que se chama Homem?

Em 1994
os Hutus mataram 800 mil
Tutsis,
agora mesmo,
está a acontecer o mesmo,
os Hutus estão a matar os Tutsis
e os Dinka estão a matar os Nuer,
e vice-versa

Genocídios sempre houve,
a História relata-os,
mas ler notícias de hoje
que descrevem genocídios
que estão a acontecer agora
no Sudão do Sul e nos Grandes Lagos,
não é História

Afinal, que raio de ser é este
que se chama Homem
e que pratica o genocídio?

O Homem foi criado por Deus,
e foi assim:
Deus estava muito cansado,
tinha terminado de criar o universo
sem a ajuda de ninguém,
estava cansado, mas não descansado,
faltava ainda algo que fosse mais belo
do que tudo o que tinha criado,
e, ao ver-se ao espelho,
criou o homem,
chamou-lhe Adão,
depois, ao vê-lo só e com fome,
tirou-lhe um pedaço da sua costela
e, com ele, fez a mulher,
chamou-lhe Eva ...

Ora bolas,
tive que interromper esta linda história,
alguém me está a chamar mentiroso
e a gritar que só escrevo histórias da treta,
ele diz que Adão e Eva
nunca foram de pele e osso
e que a história é outra:
no princípio, o Homem era sapo,
rastejava no chão fétido
e engolia minhocas,
depois evoluiu para macaco
e começou a andar de pé,
os que continuaram de cócoras
continuaram macaco
e não passaram da cepa torta,
só dormem e comem
do que houver,
deles não reza a História,
enquanto o Homem,
esse sim,
progride, cresce, constrói,
é inteligente, discerne,
chora, ri, domina o frio
mesmo que não hiberne,
compra e vende a alma, o calor,
a natureza,
e, por fim, tenta dominar a morte e a dor
inventando e reinventando um qualquer deus,
ou uma qualquer deusa,
esse é o Homem nu e cru,
é animal inteligente, mas não passa
de um animal e é feroz e selvagem
como os outros animais,
também nasce e morre nu
e também é comido pelo fogo e pelas larvas

Ó tu que interrompeste
a minha linda história
sobre o Homem,
fora daqui, sua peste,
prefiro a minha história
à tua,
o Homem foi criado por Deus
e é bom,
só é mau nalgumas fases da lua

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Viajo no meu corpo

Viajo no meu corpo,
tem asas, tem motor,
por vezes é fortaleza,
por vezes é fraqueza,
mas é o meu corpo,
é meu, é mesmo meu,
não é de mais ninguém,
direito ou torto,
de olhos no chão,
ou levantados para o céu,
a chorar, a rir, a dormir no conforto,
a abraçar um amigo, um irmão,
é o meu corpo,
ele é meu, de mais ninguém

Viajo no meu corpo,
mesmo parado ele está a viajar,
mas acabará por se cansar
um dia, talvez num porto
distante deste lugar,
e, nesse dia, mesmo que queira,
o navio não o deixará embarcar,
ficará no cais a expirar
a última poeira

domingo, 13 de dezembro de 2015

Janela

Hoje acordei ainda era madrugada,
em passos de flanela
fui até à janela,
estava fechada,
corri as cortinas
e abri-a,
um assobio, depois uma rajada,
um cheiro a pólvora
invadiu-me as narinas,
não, não era a guerra,
era o vento
a entrar com o mar
pela minha janela
adentro

sábado, 12 de dezembro de 2015

Ninguém morre à míngua

O galo anuncia
mais uma aurora,
bonita cantiga
có-có-ró-có-có

Colhem-se nos prados
couves e nabiças,
cantam nos cerrados
melros e carriças

As ovelhas pastam
livres ao ar livre,
se os anhos se afastam
largam-se a balir

A tarde traz frio,
recolhe-se o gado,
vai para o abrigo
da noite abrigado

O tacho ao lume,
a lareira acesa,
não há azedume
à volta da mesa

Dorme o povoado
à sombra da lua,
dorme descansado,
ninguém morre à míngua

sábado, 5 de dezembro de 2015

Céu limpo

Foi-se a luz do dia
e já caiu a noite
no meu monte coberto de musgo
e de garrigue,
restam apenas algumas brumas
do crepúsculo,
são ténues nuvens de névoa
que desmaiam nas carumas
e na felpa,
e não protestam

Já caiu a noite
e ergo os olhos para o céu,
está limpo,
tão limpo que até brilha de tanto asseio,
quem o terá limpo?

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Dia da feira

Eu tinha um tacho,
um tacho de barro,
mas esse meu tacho
abriu uma racha
e fiquei sem tacho

E hoje fui à feira,
à feira dos quatro,
com o pé-de-meia
comprei outro tacho,
outra vez de barro

E diz-me um vizinho,
tenho um tacho assim
já muito antigo,
era onde a velhota
fazia a cachola

E lembrei o dia
da morte do porco,
era uma alegria,
todos de borco
a molhar a fatia

De broa fresquinha
no molho de alho,
banha e cebolinha
a guisar no tacho
e mais a carninha

Cortada do reco
já morto e aberto
de pernas para o ar
com o sangue a pingar
para o alguidar

Era uma alegria,
matava-se o porco
e naquele dia
a gente comia
o melhor do porco

Mas só nesse dia,
no dia seguinte
via a salgadeira
a vazar de cheia
de gordo toucinho

A febra e o lombo
serviram de troca,
o toucinho gordo
era mais que um porco
e enchia mais sopa

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Os muros do meu pátio

Veio a noite
e ficou escuro o meu pátio
tão antigo como a força
de quem me terá dado
o primeiro abraço
e de quem, com a mesma força,
empilhou, uma a uma,
estas pedras de calcário
que são agora, uma a uma,
os muros do meu pátio

Veio a noite
e fico a mirar estas pedras,
peço-lhes para me contarem o passado,
calmamente, sem pressas,
porque elas têm muito que contar
e eu tenho vagar
 
Mas elas não falam comigo,
estão mudas,
projectam-me apenas sombras da noite,
não, não acredito que estas pedras sejam surdas

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Fernando Pessoa

Faz hoje anos,
ontem, ele estava só
com a sua solidão,
foi ao Martinho
e abusou do absinto,
depois deitaram-no só,
só não,
deitaram-no com a morte,
só ela lhe deu a mão

sábado, 28 de novembro de 2015

Cantiga ao Zé da Pocariça

Ele era pedinte adivinho,
carregava a sua mobília,
uma panela, um tachinho,
uma sertã, uma mochila

Tinha um sorriso amarelo,
as calças presas por um fio,
nos pés, umas botas de pele
já deixavam entrar o frio

Cobria-o uma gabardina
parda e coçada pelo tempo,
uma boina já carcomida
abrigava-o do relento

Ele era pedinte leitor,
contava lendas e histórias,
recitava poemas de amor
e cantava as suas glórias

Lia a sina a fazer contas
em folhas de papel de embrulho,
quando elas ficavam prontas
anunciava um bom futuro

Foi com ele que aprendi
a juntar as primeiras letras,
numa noite de vigília,
ouvi-o chamar as estrelas

Ele aparecia quando queria,
quando deixou de aparecer
pensei que ele não aparecia
porque já não queria aparecer

Ele era o Zé da Pocariça,
pedia apenas dormida
e um papo-seco com chouriça,
por vezes lamentava a vida

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Os dinossauros e a Lucy

Abriu-se uma brecha
na densa atmosfera,
daí saiu um imenso clarão
que iluminou a Terra
de norte a sul, de este a oeste,
depois, um ensurdecedor trovão
fez tremer o chão
já numa total escuridão

Morreram todos os seres vivos,
em silêncio, sem gritos,
uns morreram logo,
outros agonizaram por mais uns dias

De milhões e milhões de dinossauros,
só ficaram os ossos,
eles foram donos e senhores da Terra
durante cento e sessenta milhões de anos
de outra era,
multiplicaram-se muito,
cresceram demais,
só davam urros,
não tinham um minuto de paz,
matavam-se uns aos outros,
também matavam os outros animais

Tornaram-se monstros,
encharcaram a atmosfera
de gazes de carbono
que eram expelidos pelas chaminés
de montanhas de fezes,
esses gazes comeram a camada de ozono,
- não pode ser,
estes monstros têm de desaparecer,
assim deliberaram os deuses,
assim se fez

A Lucy não foi um dinossauro,
foi um hominídeo do sexo feminino
e faz hoje 41 anos que foram descobertos
os seus ossos,
- são ossos do nosso antepassado mais antigo,
afirmou quem os descobriu

E também afirmou que a Lucy
viveu há 3,2 milhões de anos,
sendo assim, ainda podemos estar aqui
mais 157 milhões de anos
como os dinossauros,
mas eu acho que os deuses
já se reuniram e já deliberaram,
- não pode ser,
estes monstros são piores que os dinossauros

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Ó Abraão

Ó Abraão,
por que razão
partiste de Ur para Canaã?
por que razão
levaste o teu clã
para as terras dos Cananeus
dos Assírios, dos Hititas,
dos Filisteus?
vá lá, deixa-te de intrigas
e não me digas que foi o teu deus
que te ordenou a partir
e a conquistar terras que não eram dos Semitas

Ó Abraão,
por que razão fizeste mal as partilhas
entre os teus filhos Ismael e Isaac,
não sei se sabes, mas essas duas famílias
nunca viveram em paz!

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Espantalho

Ó estrelas do céu, daqui deste meu abrigo
quero segredar-lhes apenas estas palavras
que definem o meu corpo nado e mendigo,
valho menos do que um espantalho das searas

Ele espanta pardais e segue o som da tramela,
está sempre de braços abertos, faz rir quem passa,
ele é espantalho e também faz de sentinela
de noite e de dia, não se cansa, nem disfarça

Quero ser de palha como o espantalho de palha,
não lhe bate no peito um coração vermelho
e rejuvenesce quando lhe mudam a palha

Ó estrelas do céu, tirem-me a carne e o cabelo,
encham-me de palha fresca e de penas de gralha,
fico espantalho, mas não engelho de velho

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Imolou-se por Alá

Ele vestiu um colete de explosivos
e imolou-se por Alá

Ele, o Alá, ouviu os gritos
e acolheu no paraíso
todo o sangue derramado,
o sangue do imolado
e de quem teve o azar de estar ali
e não acolá

Foi então que o imolado
descobriu que o seu Alá
era um deus desalmado

sábado, 14 de novembro de 2015

A Ana partiu

Ela fechou os olhos e os lábios,
mas não foi ela que os fechou,
foi ele, o bicho que se cravou
no seu corpo de sal e de favos

Foi ele que lhe fechou os olhos
e os lábios para sempre, foi ele,
o bicho caranguejo sem pele
e cheio de espinhos e de abrolhos

Partiu assim a sobrinha Ana,
nos seus olhos e lábios cerrados
vi o esforço dos derrotados,
ficou mais cara a esperança

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

A vasilha já era velha

Ela era a heroína da adega,
era vasilha de ripas de carvalho
que já se dobravam aos golpes do malho,
mas ela era a vasilha da água-pé

Havia festa no dia em que era aberta,
chouriço, castanhas, pão, homens e copos
enchiam de alegria aquela adega
onde a água-pé corria a rodos

Mas aquela vasilha já era velha
e deu de si num dia de São Martinho,
desabou e encheu o chão da adega

De água-pé que não queria ser vinho,
- mas que desgraça, grita o Zé da Velha,
quando bateu à porta do seu vizinho
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Viva o dia de São Martinho 

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Ansiedade

Tenho cá dentro uma bola de fogo,
arde, arde, arde, e não se apaga,
quando respiro, queima,
quando falo, sai lume,
quando choro, sai lava,
quando durmo, não durmo

Sou fogueira de fogo lento,
dói, dói, dói, e não passa,
se me sento, levanto-me logo e ando,
e ando, e sento-me, e ando,
e ando, e sento-me, e ando,
e ando, e ando e não descanso,
até quando?

Acalma-te, diz uma voz amiga,
acalma-te, acalma-te, isso passa,
e o fogo amaina, amaina,
o lume vai ficando brasa,
a brasa vai ficando cinza

Mas um tição e mais outro tição
chegam-se ao lume quase inerte
e reacende-se o clarão
da fogueira que desperta
e que reclama mais achas, mais carvão,
mais ânsia, mais treva

Acalma-te, acalma-te,
diz-me a mesma voz,
isso passa, anima-te,
virão dias melhores

E a fogueira sem achas
acalma,
ainda crepitam chamas,
mas vão-se apagando,
apagando, apagando,
e apagam-se,
ficam só sinais de fumo branco
e de calor brando

Não voltes a acender-te,
ó fogueira de ânsias,
de tormentos, de angústias,
que não volte a temer-te
e a regar-te com lama ardente,
que nada reste dessas fagulhas
e que continue apenas acesa
a chama da tranquilidade,
aquela chama de vela
que se mantém impávida
no meio da tempestade,
"like a candle in the wind"

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O cão perigoso

Aquele cão grande de raça
é perigoso,
está a ladrar a quem passa,
quer ferrar os dentes num osso,
ou nas minhas canelas,
é só ameaça, diz o dono,
ele não faz mal, está só a afinar as goelas,
o meu cão é tão meiguinho, e tem tanta graça,
ele não faz mal nem às cadelas,
só ameaça

Ão, ão, ão,
é tão meiguinho o meu cão
e não caga na rua, caga no jardim,
diz o dono cagão,
ão, ão ,ão

Ão, ão, ão,
é tão, tão, tão
meiguinho o meu cão,
e tão meu amigo o meu cão,
não tenha medo do meu cão,
ele não morde,
só quer festinhas, quer ver?
ele não morde,
tá a ver

Ão, ão, ão,
ai que ele vem atrás de mim,
ó pernas para que vos quero,
digo eu, com as calças na mão
cagado de medo

Não me mordeu o cão perigoso,
mas eu mordi o dono,
abocanhei-lhe o pescoço
e dei-lhe um pontapé no estômago
(isto imaginei eu enquanto fugia
a sete pés do colosso)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Dia do fiel defunto

Chove nos montes,
chove nos povoados,
cantam as fontes
calam-se os pássaros

Chove chuva de Outono,
a terra abre-se alegre
e recolhe o sumo morno
que o céu encoberto verte

A erva pinta-se de verde,
a pedra branca amolece,
a horta pula e floresce,
afoga-se a seca infértil

Deixem chover a chuva,
ela trás vida e frescura
a este dia do fiel defunto
que já não quer este mundo  

E que chova também chuva
no dia do defunto infiel,
talvez assim se torne fiel
depois de deitado na sepultura

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Poema adolescente

Estava acorrentado a uma rocha
quando alguém,
possuído de rezas e de força,
rasgou os ferros
da corrente
e, aos berros,
anunciou um nascimento

Assim nasci,
nasci livre, solto,
mamei, chupei, chorei, rezei,
ri, cantei,
fui bebé, miúdo, garoto,
chateei, encantei

Nasci e cresci
sempre solto,
era franzino, inocente,
era o mais novo,
depois encontrei-me adolescente
e voltaram os ferros,
outros ferros,
com eles rolei pelas encostas,
rasguei os joelhos,
deixei-me ir em águas revoltas,
espantei bichos e feras,
mergulhei em barreiros e lagoas,
encharquei-me nas marés,
remei contra a corrente,
que força! que raiva!,
sempre aos pulos, sempre impaciente,
queria sempre mais

Até que, encostado
a um tronco esburacado,
descansei um pouco,
estava exausto de miragens,
não estava louco,
era só um viajante de más viagens

Foi quando
uma folha caída se agitou,
não havia vento,
a folha era uma voz
- eu sou alguém de que tu precisas,
ó alma adolescente,
sou a musa das premissas
e chamo-me Consequência,
segue-me
e afasta-te da inconsequência

Fiquei agarrado
e amparado

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A pantera

Desequilibrou-se a pantera
e caiu no fundo da cratera
depois de um longo voo
sempre em queda
sem pára-quedas
e sem enjoo,
era cor de rosa
e ficou da cor das panquecas,
mas logo se recompôs
e seguiu a sua vida airosa,
era pantera e era cor de rosa

Desenhos animados,
animados porque andam
e porque me animam,
vivam os desenhos animados,
abaixo os desenhos desanimados
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Hoje é o Dia Mundial do Desenho Animado

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Sou do Governo

Hoje apetece-me ser do Governo,
apetece-me ser o Ministro
da Despensa e do Frigorífico
e, ao mesmo tempo,
o Ministro Tesoureiro
do Fisco,
esperem, tenho uma mensagem do Primeiro ...
lá está ele a chatear!
quer saber se há caviar, Moët & Chandon e marisco,
já estou a desesperar, o dinheiro
nem chega para a marmelada!
bem, vou telefonar ao meu peixeiro
e talvez arranje uma caldeirada

sábado, 24 de outubro de 2015

Sou caucasiano

Sempre me foi mais fácil determinar
a origem de uma mercadoria
do que identificar
a origem de uma pessoa

As regras de origem das mercadorias
estão escritas nos códigos aduaneiros
e nos acordos bilaterais, ou multilaterais,
negociados e assinados por suas senhorias,
os patrões desta aldeia global donos dos dinheiros,
das almas e dos materiais

As regras de origem das mercadorias
são muito divertidas,
ainda por cima estão escritas,
estudem-nas, sim, estudem-nas,
de certeza que se vão rir

Não é o que se passa
com as regras de origem das pessoas,
estas não estão escritas em acordos,
apenas estão escritas as normas
que determinam a nacionalidade,
ou a dupla nacionalidade,
que passam a constar no passaporte

Mas, cidadania não é o mesmo que origem,
sendo assim, não entendo por que razão
continuam a existir grupos de cidadãos
a defender a pureza da origem das pessoas
gritando a quem passa:
- não, não queremos cá os que não são da nossa raça

Eu explico,
agarramos em mim,
tenho a nacionalidade portuguesa
porque nasci aqui,
se tivesse nascido mais a norte,
ou mais a sul, ou do outro lado da fortaleza,
teria outra cor o meu passaporte

Mas, qual é a minha origem?

Seguramente, os meus antepassados
remotos não eram daqui, vieram para cá,
sim, vieram de lá para cá
e ficaram cá porque não lhes apeteceu
voltar para lá,
terão vindo para cá
como invasores, peregrinos,
refugiados sequiosos, famintos,
sei lá,
mas vieram e ficaram

Desde 1179, ano em que o Papa
reconheceu o primeiro Rei de Portugal
(ele não era filho da mãe, nem do pai,
era filho do aio),
todos os humanos que viviam aqui
passaram a ter nacionalidade portuguesa,
a não ser que tivessem de fugir
para não morrer,
e tiveram mesmo, e muitas vezes,
e continuam a fugir

Pronto, eu não fugi,
mas, repito, qual será a minha origem?

Será que tenho tecidos fenícios, cartagineses,
celtas, iberos, romanos, alanos,
vândalos, suevos, visigodos,
judeus, bascos, saxões, sarracenos,
castelhanos, francos, africanos ...?

Não sei,
mas acho que sou de origem dispersa,
acho que sou predominantemente alano
da Ossétia,
com uma pitada de sarraceno e de sefardita,
falo e escrevo o português, uma língua do ramo
do baixo latim,
mas a minha língua-mãe deveria ser o farsi

Ai se alguém sabe, o que será de mim?

Por favor, não digam nada, nem façam caso,
é tudo tão relativo, não, não me expulsem daqui,
por favor, não façam isso,
não, não me obriguem a regressar ao Cáucaso

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Sol de Outono

O Sol aparece
mais ao lado
e a manhã aquece
em banho-maria
enquanto ele sobe
até ao meio do dia

Depois desce
e dorme a sesta,
quando acorda já é tarde
para aquecer
e vai para a cama mais cedo

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Um poema do meu sótão

Amor livre,
amor impossível,
amor à primeira vista,
amor hippie,
amor utópico,
amor à Woodstock,
amor desgosto,
amor a arder no fogo
do inferno
porque não entra no paraíso,
diz o confessor
como aviso,
não, não sigam esse amor,
repete o confessor,
porque é pecado e merece castigo,
sigam antes o destino
já destinado pelo destino

Mas eu não engulo esse fogo,
por isso sou esta tristeza ambulante,
um ser perdido
no meio da floresta
de abetos,
sou um condor ferido,
não, não quero o meu destino,
não quero esta tristeza ambulante,
quem me mandou ler Dante?

E sonhei que parti,
que parti com o sonho de ser cavaleiro andante,
sonhei que parti sozinho com a desventura
por esse mundo além
à procura do palácio encantado da ventura,
sonhei que cheguei a um castelo
 e que perguntei:
- vive aqui alguém?
e ninguém respondeu,
mas continuei,
subi uma montanha,
desci uma colina,
atravessei um vale,
e vi numa esquina
um ser vivo
e perguntei:
- vive aqui alguém?
e ele respondeu,
- ninguém,
depois atravessei um rio,
transpus um outeiro,
aguentei o sol
e numa árvore
encontrei um rouxinol
a cantar, e cantava, e cantava,
e perguntei:
- cantas sozinho?,
- sim, eu canto sozinho,
também ele!

Mas, quem é que me mandou para este vale?
mas, quem é que me mandou ler Antero de Quental?

domingo, 18 de outubro de 2015

Deus

Vejo cruzes, vejo campanários,
vejo estátuas, vejo colunatas,
vejo basílicas, catedrais, torreões,
conventos, santuários,
vejo altares, vejo arcadas,
ouço missas, terços, sermões,
ouço milagres em promessas pagas,
tudo em nome de Deus,
aí O procuro, mas não O vejo

Vejo muros, lamentações,
vejo explosões e orações
em terras prometidas
pelo mesmo Deus
a tribos por Ele escolhidas,
aí O procuro, mas não O vejo

Vejo mesquitas, minaretes,
multidões de fiéis
a atirar seixos a paredes
transfiguradas no diabo
e a vociferar contra os infiéis
que abominam o mesmo diabo,
tudo em nome do mesmo Deus,
aí O procuro, mas não O vejo

Vejo um sorriso
de uma criança feliz
a jogar ao berlinde
com outra criança feliz,
não o fazem em nome de Deus,
mas, se Ele existe, talvez esteja aí,
escondido, para eu não O ver

sábado, 17 de outubro de 2015

Vento

Não me consigo concentrar,
nem a ler, nem a pensar,
o forte vento
leva o meu pensamento
a voar
sobre os telhados, sobre as árvores,
onde estarão os pássaros?

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

A boda dos espíritos

A sala tem uma excelente acústica,
vibra desde o soalho até ao topo,
neste serão vai vibrar com música
clássica allegro ma non troppo

A orquestra já afinou os tons,
na plateia já não há pigarreia,
os dedos dos músicos estão prontos,
o maestro levanta a mão direita

E a orquestra começa a tocar,
os tímbalos marcam a cadência,
tumba, tumba, tumba, a dar, a dar,
e o maestro a perder a paciência

Os tímbalos não abrandam o ritmo,
os violoncelos falham os acordes,
os violinos entram em desatino,
seguindo os oboés e os fagotes

O piano embala uma valsa,
as cordas das violas um flamenco,
o pífaro chama nomes à flauta
e as trompas levantam um pé-de-vento

Uma tuba sussurra que não toca
mais nesta ditadura da batuta,
a harpa quer violar a viola
e a lira delira com o kama sutra

O piano começa a dar pulos,
um violino voa contra o tímbalo,
um contrabaixo só emite urros
e o maestro cai redondo no palco

Todos os instrumentos estão loucos,
os das cordas enrolam os dos sopros,
os dos metais vomitam bicharocos,
os da percussão estão todos rotos

O caos finda quando o gongo anuncia
o início da boda dos espíritos,
os músicos ficam quietos e hirtos
e na plateia começa uma orgia

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Caminhadas

Ando a caminhar
no ar
de pernas para o ar,
vejo o mundo
a ir ao fundo,
não sou capaz
de aterrar

Ando a caminhar
no chão
de pernas para o chão,
vejo o mundo
de olhos no chão,
não sou capaz
de os levantar

Ando a caminhar
na Lua
sem gravidade,
vejo a Terra iluminada,
bonita, azul,
será mesmo verdade?

sábado, 10 de outubro de 2015

A partir de hoje sou 60tão

Dêem-me um aperto de mão,
mirem bem este meu rosto,
apalpem este meu corpo,
a partir de hoje sou 60tão

Estou como um melão que não foi comido
na época estival, nas festas de Agosto,
fiquei de parte, não fui escolhido,
mas ainda me podem tomar o gosto

Apalpem-me, cortem-me às talhadas,
sirvam-se das rugas e da pilosidade,
cheirem o meu suor, tragam-me carradas
de amor fora do prazo de validade

Dispam-se, dancem para mim o fandango,
cantem-me os parabéns na versão abreviada,
aquela versão que se canta assobiando,
depois comam e bebam do que houver na bancada,
enquanto eu fico a murmurar estes versos,
como se fossem ladainhas de terços:

Já não sirvo para colher,
já não dou para sementeira,
muito menos para comer,
já sinto o calor da lareira;

Mas ainda quero ser
um papiro para escrever,
um átomo para arder,
um sopro de amanhecer;

Um gelado a derreter,
muitos beijos a bailar,
um desejo a ansiar,
uma caneta a escrever;

Um coração a pulsar
e uma voz a provocar
com a manha de garoto
até ao último sopro

Dêem-me um aperto de mão,
a partir de hoje sou 60tão,
vou ter de fazer contas com o passado,
vou ter de somar o que fiz
e não devia ter feito,
ao que podia ter feito e não fiz,
e não fiz apenas porque não quis
e, quiçá, porque se o fizesse
ficaria cativo dos remorsos
que despertam quando lhes apetece,
são fortes os remorsos

Sim, vou ter de fazer contas com o passado,
mas, em vez de somar, vou antes subtrair,
vou subtrair ao que fiz e devia ter feito,
ao que não devia ter feito e fiz,
assim, ficarei apenas com o que fiz e devia ter feito

(estão confusos com a minha aritmética?
também eu,
nunca tive jeito para a aritmética, nem para a dialética)

Mas vou contar com o futuro,
sim, com o futuro que está sempre próximo,
conto, porque ainda estou vivo,
porque ainda me apetece buscar o tempo perdido,
não, não vou reler o Proust,
nem procurar divindades nas entranhas do meu fígado,
mas vou tentar gozar os prazeres dos deuses do Olimpo,
daqueles que, por se portarem mal, também tiveram uma vida efémera,
vou dormir, ler, escrever, comer, beber, et cetera

Vá lá,
dêem-me um aperto de mão,
dêem-me um bacalhau, um espadarte,
um pífaro, um carro de mão,
um palácio, uma obra de arte
uma enxada, um buraco no chão,
um pontapé, uma bofetada,
uma corda, um cordão,
uma gravata, um alfinete,
um arrependimento, uma vergastada,
uma concha, um búzio,
um livro, um torniquete,
uma contrição, umas orelhas de burro,
dêem-me, dêem-me uma fornada de pão,
dêem-me também uma estrada e uma paixão
para caminhar até à exaustão,
porque a partir de hoje sou 60tão

Mas se não me derem nada
não faz mal,
se calhar até é melhor
não me darem nada,
a genial Natália já me deu
tudo, ou quase tudo,
deu-me:

"um lírio e um canivete,
um barco e um chapéu,
um esquife feito de ferro,
um pente e um espelho,
um avião e um violino"

e continua a dar-me todo o seu verso,
a sua voz, o seu grito,
só ainda não me deu
"o animal que espeta os cornos no destino"

Obrigado por terem vindo

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A minha aguarela

Uma palete de cores, um pincel, uma tela
de papel, um quadro vazio,
vou pintar a minha aguarela,
vou pintar os meus amores, o meu rio,
a minha alma, a minha janela,
vou pintar a minha vida
com a minha tinta
e com o meu pincel naïf

Um pingo de amarelo e tenho o sol
a nascer,
um pingo de verde e tenho o meu lençol
de relva a crescer,
vários pingos de várias cores
e tenho casinhas, a igreja, caminhos,
crianças a brincar, flores,
arvoredo, passarinhos,
rebanhos, pastores

Um pingo de azul e tenho o céu
sem nuvens,
falta-me pintar o rio, o rio que é só meu,
- diz-me ó suave pincel de penugens,
de que cor devo pintar o rio da minha vida?
- mistura no godé um pingo de vermelho,
a cor do sangue que corre em ti,
um pingo de azul, a cor de fundo do teu espelho,
um pingo de verde, a cor da alegria,
muitos pingos de branco e de preto,
as cores neutras que reflectem a tua dor, a tua fúria,
mistura tudo muito bem e tens a cor do teu rio,
por onde corre a tua vida, o teu destino

Eu sei que a água deve espelhar a cor do céu,
por isso deveria ser azul o rio da minha aguarela,
mas não é,
a água do meu rio é negra como o breu,
volto a misturar, ponho um pouco mais de azul,
e nada, a água do meu rio continua escura

Olhem, olhem,
o meu rio está a inundar a minha aguarela,
está a ficar toda negra a minha aguarela,
toda negra, toda negra,
ai as minhas casinhas, as minhas crianças,
ai os rebanhos, os pastores,
não acredito no que me está a acontecer,
fecho os olhos, não quero ver,
parece que ouço gritos, clamores,
estarão a morrer?

Mas que lamaçal!
inundou-se a aguarela
da minha vida, que fiz eu de mal?
talvez o meu estilo de pintar
não se dê com esta tela,
talvez tenha doseado mal a água,
talvez tenha faltado a luz na minha aguarela,
talvez seja do pincel,
ou das minhas mãos que não o agarram bem

Vou tentar pintar outra vez
a minha aguarela,
mas agora não vou usar pincel,
vou encher a minha tela
só com palavras,
mas vou procurar palavras
que só podem ser escritas com tinta de mel
e aparos de favos,
palavras doces, temperadas, afáveis,
mas eu não sei como fazer tinta de mel
nem aparos de favos,
alguém sabe?

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Blocos

Eu tenho três blocos,
todos eles ocos,
um à minha direita, o bloco da direita,
outro à minha frente, o bloco central,
outro à minha esquerda, o bloco da esquerda,
o da direita é de esferovite contrafeita,
o central é de pedra sem cimento e sem cal,
o da esquerda é de tijolo feito de palha e de erva

Se lhes der um pontapé,
caem como um baralho de cartas,
mas tenho esperança e fé
em que os políticos carpinteiros e pedreiros
me vão construir um bloco de retaguarda,
um bloco forte e sem rodeios

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A vida é como um rio

Vai com a força do rio
esta água a correr, 
como posso eu beber
água fresca deste rio?

Um rio é como a vida,
nasce do chão a chorar
por não saber respirar,
mas logo sai em corrida  

Daí a pouco já brinca
a refilar com as margens
e a colorir paisagens,
sendo a água a sua tinta

Quilómetros mais à frente
vai mais foito o meu rio,
encontra um afluente
e abraça-o como amigo

Mas vem muito poluído
o ribeiro afluente,
dá um grito o meu rio
e desmaia de repente

Já não bebo desta água,
poluíram o meu rio,
já não paro nesta fraga,
cheira mal este meu rio

Não te deixes abater
ó rio da minha vida,
arrebita, arrebita,
quero-te para beber

Um rio é como a vida,
nasce, corre e faz viver
tudo o que nele se abriga,
tudo o que dele beber

Mas se a água do rio
não for água de beber,
ele é um morto vivo,
morreu antes de morrer

Um rio é como a vida,
a vida é como um rio,
nascem para a descida
e descem até ao fim

E o fim é só um esgar,
foi um ar que lhe deu,
o rio fica no mar
e a vida quer ir prò céu

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Sou Rei

Olá, sou o Vitório Rei
e hoje apetece-me ser Rei
a sério,
vou pôr a minha coroa de ouro de lei
e não saio do meu castelo
do Restelo,
abaixo a República,
até fico com todo o meu pêlo
em pé,
só de ousar pronunciar essa palavra
que viola a minha mais íntima fé

Hoje sou Rei
e fico em casa a reflectir,
vou ter de decidir
quem hei-de
chamar para formar governo,
se a coligação de direita,
se o saco de gatos da esquerda,
todos uns republicanos de merda

Hoje quero ser um Rei a sério,
não quero sair do meu castelo,
abaixo a República,
quero outra vez o meu império

- vai-te embora ó velho cavaco,
nunca valeste nada, seu velhaco

Mau,
uma manifestação debaixo da janela
do meu castelo,
vou já chamar a Guarda Nacional Republicana,
porra, lá tive que dizer outra vez
aquela palavra
------------------------------------------
Hoje é dia da República,
viva a República de Portugal

sábado, 3 de outubro de 2015

Uma tarde de reflexão

Os sons do entardecer deste Outono
ainda quente, teimoso,
fazem-me sono,
enrolam-me em filamentos de letargia
e cobrem de melancolia o meu espírito,
não estou triste,
mas também não sinto alegria

Estou ensonado
nesta tarde de Outono
e não consigo ver-me em nenhum lado,
estou assim, insosso,
atrofiado, no meu pátio

Mas estou obrigado
a reflectir
nesta tarde de Outono,
pedem-me para decidir
a quem dar o meu voto
quando amanhã estiver só
na cabine de voto

Está bem, vou reflectir:

Eu voto sempre,
e voto porque posso votar em liberdade,
há muita gente
que não o pode fazer,
e houve muita gente
que lutou até morrer
para eu agora o poder fazer,
por isso, voto sempre,
e nunca anulo o meu voto,
nem o pinto de branco,
porque ainda acredito que me dizem a verdade
quando pedem o meu voto,
voto e tento não votar em quem mente,
antes ou depois do meu voto,
mas diz-me a voz do povo:
quem mente uma vez, mente sempre,
e na política só deixam de mentir
quando as galinhas tiverem dentes

Será mesmo assim?

Eu sei que o meu Estado
está nas mãos dos credores,
mas, quem quer governar
não o diz,
eu sei que o meu Estado
continua a tirar aos pobres
para pagar juros à usura dos vendedores
de dinheiro, a quem chamam "mercados",
mas, quem quer governar
não o diz,
eu sei que o meu Estado
pediu e continua a pedir
muito dinheiro emprestado
para poder gerir
e sustentar a sua clientela,
aqueles que enriquecem a sugar o meu Estado,
sobrando apenas uma pequena parcela
para os seus empregados,
para a saúde pública, para a educação
para a solidariedade,
para uma nação feliz,
mas, quem quer governar
não o diz 

Eu sei que o Banco Central Europeu
vai deixar de comprar dívida pública
e que o meu Estado vai entrar em falência técnica,
depois terei que aturar aquela linguagem pudica
dos economistas a explicar 
que a dívida do meu Estado é insustentável,
mas todos temos que a pagar
e não se pode dar a entender aos credores
que não a podemos pagar,
caso contrário, aumenta para o dobro
logo no dia seguinte,
e quem governa limita-se a dizer
que a culpa não é dele,
- não, a culpa não é minha,
a culpa é daquele
que governou antes de mim

Eu sei que, apesar dos esforços
dos mais pobres,
a dívida pública do meu Estado
aumentou muito nos últimos quatro anos,
sim, aumentou em vez de diminuir,
já me explicaram porquê
e eu não percebi,
mas, quem governa
também não percebe

A política
será mesmo uma mentira?

Teremos outra alternativa
a esta democracia representativa
baseada em partidos de caciques?

Pronto,
não reflicto mais,
já não maço mais a minha cabeça,
vou continuar insosso
e esperar que este dia anoiteça,
amanhã será outro dia de Outono,
os magos do tempo prevêem tempestade,
ventos fortes e chuva pesada,
os magos do tempo costumam dizer a verdade

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Música

Gostava de escrever um poema
com sons de notas e de ritmos,
mas não posso, a minha pena
só tem ouvidos
para palavras e tons tremidos

Gostava de escrever uma canção
com sons de pássaros e de abelhas,
mas da minha mão
não saem claves, nem colcheias,
nem fusas, nem semifusas,
só saem linhas e teias
de letras e de vírgulas

Gostava de escrever uma sinfonia,
dar sons aos violinos, aos violoncelos,
aos tímbalos, às tubas, aos oboés,
uma sublime harmonia emanaria
de toda a orquestra,
tão sublime que subiria aos céus
conduzida pela batuta do maestro

Gostava de escrever um fado,
um fado vestido de lágrimas
e de saudade para ser tocado
por chorosas guitarras
num qualquer beco mal afamado
acompanhando vozes agarradas
às lamúrias do nosso triste fado

Gostava de saber escrever música,
gostava de a saber ler, tocar e cantar,
assim amaria mais a minha musa,
dar-lhe-ia uma harpa de encantar,
seria tão bom, ela a tocar
e eu escrever a letra e a música,
sempre a cantar

Mas não sei escrever música,
não sei nada de música,
não tenho esse dom de deuses,
também não o tem a minha musa,
ela só me dita frases
--------------------------------------------
Hoje é o Dia Mundial da Música, que viva a música

terça-feira, 29 de setembro de 2015

O cão e a dona

Ia toda airosa
pela rua fora
a dona do cão,
ia de salto alto,
acima do chão,
cara pó de talco,
riso flor da rosa,
ancas a dar a dar
toda vaporosa,
toda perfumada,
o seu cão ia atrás,
muito carinhoso,
muito lustroso

O cão parou
e cheirou o chão,
depois cagou
um cagalhão,
depois outro,
ela nem olhou
e pensou:
merda de cão,
que fedor,
que horror

Seguiram rua
a dona e o cão,
iam airosos, vaporosos,
um regalo de asseio,
os seus cagalhões malcheirosos
ficaram a secar no passeio

sábado, 26 de setembro de 2015

Fui peixe

Acordei agora
e já é hoje
há muita hora,
dormi bem esta noite,
mas ainda não sei bem o que se passou,
parece que dormi dentro do mar,
houve tempestade,
muito vento e as vagas
arrastavam-me para uma praia
que não estava lá,
era um náufrago, mas era peixe,
nadava com tubarões, mantas, raias,
baleias,
uma moreia ria-se de mim,
ela nunca tinha chocado
com um peixe assim,
sem barbatanas e sem rabo

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Viver é ter paciência

Viver é ter paciência
para ver o tempo a passar,
a fazer tiquetaque, tiquetaque,
sempre a mesma cadência
de noite e de dia

Viver é ter paciência
para a matéria que nos enforma,
para esta massa mole
que nos fere com a doença
e que não aguenta a sede e a fome

Viver é ter paciência para nascer
e para crescer como somos,
é ter paciência para ver morrer
e para ouvir dizer que todos
temos que morrer

Viver é ter paciência para o entardecer,
para o desânimo,
para a infelicidade, para a tristeza,
para a ilusão, para o engano,
para a crueza

Viver é ter paciência
para ver o fausto e a riqueza
de poucos
ao lado da miséria e da pobreza
de todos os outros

Viver é ter paciência
para optar entre matar ou morrer,
é ter paciência para amar, odiar,
recordar, aguar, ajudar, sobreviver,
aprender, ensinar, acreditar, trabalhar ...

Viver é ter paciência
para viver

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Outono

Ó Setembro,
acorda o Outono,
é daqui a pouco que o Sol vai bater
na linha do tempo,
é o momento do equinócio
deste hemisfério
mais a norte,
é o momento em que se deita o Verão
no leito onde dorme,
emergindo o Outono
do fresco subterrâneo
onde hibernou

Bem-vindo, ó Outono,
não te via desde o ano passado,
vem e começa já a despir as árvores
e a vestir os campos de cores
de amarelo torrado,
vem e vai ao mar buscar
o húmido vento
e trá-lo carregado de nuvens de água
e de sustento,
que venha esse vento,
que venha livre, a uivar,
que não esmoreça,
que se desfaça em mornas chuvas
nos vales, nas serras, nas várzeas,
que se desfaça antes que arrefeça,
antes que me calce as pantufas
e me cubra as orelhas e a cabeça
de lãs, ou de camurças

Bem-vindo, ó Outono de 2015

domingo, 20 de setembro de 2015

Passador de fronteiras

Para passares as fronteiras sem passaporte
precisas de um passador,
ele sabe como passar a tua fome e a tua dor
para lá do contraforte

Numa manhã, bem cedinho,
ele abalou,
às costas levava a trouxa,
na mão um saco de linho
com broa e toucinho,
ia ter com o pai aos "champignons"

Passou a pé a fronteira
no grupo do passador,
deambulou muito entre Almeida
e Salamanca,
ele só tinha treze anos,
disse-lhe o passador:
- toma lá, fuma para pareceres grande,
nunca mais parou de fumar

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A vida é uma passagem

Dizem que a vida do Homem é uma viagem
que não acaba neste mundo,
dizem que ela continua, dizem que ela passa
para a outra margem,
mas alguém sabe como é essa outra margem?

As respostas que eu conheço são dogmas,
e, portanto, não as discuto, é assunto sagrado,
até aceito as diversas formas
dessa margem do outro lado
descritas nas diferentes escrituras,
todas elas sagradas,
mas ontem ouvi umas bruxas
que liam em coro as seguintes palavras:

«A vida do Homem é uma passagem
que acaba no fundo das trevas,
morra ele impregnado de fé,
morra ele a arrotar ódios e guerras,
morra ele em paz, se a houver

E este Homem não merece melhor:

Porque ele não foi ensinado a amar;
porque ele matou a esperança;
porque ele queimou o mar;
porque ele não sabe ser criança;
porque ele não sabe celebrar a vida;
porque ele só sabe celebrar a morte;
porque ele farta-se de matar

Sim, este Homem farta-se de matar,
e, pasme-se,
ele ri-se quando mata, sim ele ri-se
quando mata,
este Homem não passa de uma besta,
sim, quando mata ele ri-se,
sim, este Homem é a Besta,
a Besta do Apocalipse,
sim, este Homem incarnou o mal,
sim, este Homem incarnou o espírito maligno,
sim, este Homem é o fim,
e o mundo acaba para o Homem
quando nascer o Sol
no meio do Pacífico
no dia cinco ...»

E fugi dali,
não ouvi mais aquelas bruxas,
subi ao meu quinto piso
e perguntei-me: para quê ter dúvidas?
a outra margem fica no Paraíso,
e pronto,
assim rezam as sagradas escrituras
e os seus pregadores,
quer os que as pregam ponto por ponto,
quer os que acrescentam um conto,
e agora vou tentar dormir tranquilo, sem suores

domingo, 13 de setembro de 2015

Refugiados

Procuram um abrigo,
um refúgio,
mas fogem de que perigo?
de um dilúvio?
não,
das lavas de um vulcão?
não,
da natureza em fúria?
da enxurrada? da tormenta?
da seca extrema?
não,
então?
procuram refúgio
porque fogem
do pior perigo:
o Homem

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Cantiga a um velho rico que não quer morrer

De que te vale teres cofres cheios de ouro,
se não te rejuvenesce esse tesouro,
de que te vale teres camisas de seda pura,
se nunca vestiste ternura,
de que te vale teres um Rolls-Royce,
se não entendes o James Joyce,
de que te vale uma donzela numa noite de núpcias,
se já não te encharcam as volúpias,
de que te vale teres um iate,
se navegas para o desastre,
de que te vale polires os espelhos,
se os teus olhos já são velhos,
de que te vale um leito de luxo,
se te deitas num corpo murcho,
de que te vale teres um solar,
se nele não entra o ar,
de que te vale a tua vaidade,
se tudo se vai com a idade,
de que te vale teres,
se te pesam os teus haveres,
de que te vale quereres,
se só dizes o que não queres,
e o que tu não queres é morrer,
mas isso tem que ser

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Debate

Tocam os sinos a rebate
na torre da nossa igreja,
não é incêndio, nem desastre,
nem sinais de qualquer peleja

Também não é dia de festa,
nem de caça ao javali,
terá fugido alguma besta
dos currais do senhor Joaquim?

Então vossemecê não sabe?
hoje temos todos que ver
o que vai passar na TV,
vamos ter um senhor debate

Pela esquerda vem o Costa,
o Coelho pela direita,
já têm as armas à mostra
e os árbitros à espreita

E, como eu sou um adivinho,
já sei quem ganha o debate,
vamos ali beber um tinto
e eu dir-lhe-ei o resultado

O Coelho tem ar seguro
e de quem foi sempre mimado,
tem rosto mecânico e puro,
é um robot engravatado

O Costa é bonacheirão,
parece-me ser mais humano,
mas não tem ar de aldrabão
e não vencerá o espartano

Sabe muito bem este vinho,
que venha mais uma rodada,
não gosto do meu vaticínio,
que venha mais uma rodada

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Alforrecas

Gordas alforrecas
deram hoje à costa na Costa,
em cerca de duas léguas
contei mais de mil,
se estão mortas,
foi um suicídio colectivo,
se estão vivas,
foi uma romaria

domingo, 6 de setembro de 2015

Chão de xisto

Lá bem no fundo
corre água entre pedras
e musgo,
um som sobe o vale,
é o murmúrio dessa água
a correr,
ela assobia e sussurra
às pedras e ao pinhal
que lhe faz falta muita chuva,
muita chuva fresca,
sem ela não tem caudal,
nem força, nem voz,
para correr depressa
no fundo do vale
como um rio turbulento, veloz,
bravo, furioso,
um rio com pressa de chegar à foz

O murmúrio da água
sobe o vale e vem até mim,
ouço também o arfar das cigarras
e inspiro o aroma doce e quente da resina,
fico alucinado, levezinho,
sinto-me um ser alado com asas
de feto e esqueleto de pinho,
ainda bem que me agarras,
ó chão de xisto

sábado, 5 de setembro de 2015

Os feiticeiros de Bilderberg

Vemos um corpo de um menino curdo
todo molhado,
fugia da guerra, das bombas, do absurdo,
morreu afogado,
e a Europa chora,
chora e acordou,
só agora?
mas já morreram tantos meninos!
viva a Europa,
agora vai ajudar os refugiados sírios,
quem mais ajudar,
leva uma medalha de âmbar

Mas que hipocrisia!
Quem é que instigou e instiga
a guerra no Iraque, na Síria,
etc. etc. etc.?

Sim,
estas lágrimas da Europa
são lágrimas de crocodilo,
são as mesmas lágrimas
que correm nos rostos
dos nossos blaires
dos nossos barrosos,
dos nossos aznares,
a Europa apoiou-os,
a Europa foi criminosa,
a Europa mexeu no vespeiro dos iraques
e deixou lá as vespas,
elas cresceram, aumentaram,
agora são bestas

E o que fazem agora as bestas?
destroem, matam,
estavam à espera de quê?

E o que fazem agora
os aznares, os blaires, os barrosos?
discursam, são oradores,
dão lições de política e de história,
sem remorsos, sem dores,
prendam-nos, prendam-nos,
eles arranjaram falsas provas
para serem legítimos invasores
ao lado dos bushes,
são criminosos, prendam-nos, prendam-nos

E sabem por que razão não acabam as guerras
no Iraque, no Iémen, no Afeganistão, na Síria,
no mundo?

E sabem por que razão não acabam as misérias
da maioria das gentes de África?

Porque quem manda no mundo
são os homens que lucram com a guerra
e com a miséria,
são os donos das armas, do crude,
do capital, da informação, dos negócios,
são eles, são eles, são eles,
são eles que atiçam os ódios,
são eles e os seus homens vestidos
de políticos,
são eles, os feiticeiros de Bilderberg

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O penedo de granito

Ele é escuro, imponente,
redondo, está suspenso
naquela encosta,
mas não se desprende,
nem rebola

É um penedo de granito,
nem lhe toco,
deve ser duro e radioactivo,
também não será oco,
nem arenito

Olhem, ali vai um pastor,
um pastor menino,
sobe a encosta com o seu rebanho,
um amor,
olhem, não me engano,
o menino e o seu rebanho
pararam junto ao penedo,
não têm medo

Gritei-lhes, saiam daí,
não se encostem a esse penedo,
ele pode rodar e cair
no vale e esmagar o arvoredo,
mas eles não me estavam a ouvir

O rebanho pastava a erva em flor,
pachorrento, tranquilo,
o penedo de granito, também tranquilo,
dava abrigo ao pastor,
parecia ser seu amigo

E eu muito aflito,
ai que aquele penedo vai rebolar,
ele tem vida, ele tem coração,
ele tem energia, ele está vivo,
ele está acima do chão,
ele vai rebolar,
e eu, muito aflito,
grito:
- cuidado, esse penedo de granito
vai rebolar
pela encosta abaixo,
ele está acima do chão, ele está no ar,
ele vai rebolar

Desce o pastor a encosta,
vem direito a mim,
terá ouvido o meu grito?

- Ó senhor, não viu por aí um cabrito?
afastou-se do meu rebanho e perdi-o,
é só prejuízo, estou aflito,
sou um humilde pastor de rebanhos,
subo e desço estes vales de granito
a guardar os cabritos e os anhos
do meu dono rico,
e ai de mim se perco algum, ai de mim

- Boa tarde, rico menino,
não vi nenhum cabrito
tresmalhado,
mas se eu o vir,
encaminhá-lo-ei para ti

- Bem haja, meu bom senhor

- Espera, pastor menino,
não te assusta aquele penedo
de granito?
- Ó não, dele não tenho medo,
é o meu abrigo,
escondo-me nele quando tremo
de frio, de fome, de medo

O pastor menino
voltou a subir a encosta,
irá a chorar?
não, não, ele não chora,
não, ele não pode chorar,
ele é rijo, ele tem que ser rijo,
ele tem que ser rijo,
rijo como o penedo de granito

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Beirã

É estranha esta estação,
muitas linhas, alguns cais,
não há um único vagão,
não guarda carruagens,
vejo apenas um homem,
está só,
tem ar de viajante sem viagens,
eu pergunto:
- a que horas passa o próximo comboio?
- ó, o senhor chegou atrasado,
o próximo comboio já passou, e foi o último

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O ácido desoxirribonucleico

Quando somos gerados,
ficamos logo cravados
com milhões de minúsculos alfinetes
feitos de um composto orgânico
a que chamam ácido desoxirribonucleico,
nada de complicado, são simples alfinetes de gel
com um mecanismo mecânico
que abre e fecha conforme o fecho

Esse ácido é apenas mais um dos muitos
produtos químicos
que são lançados ao ar sob a forma de polímeros,
com uma diferença,
o ácido desoxirribonucleico é lançado ao ar
para cair no chão, não para se esfumar,
e ao cair no chão dá-se uma reacção
donde resulta sal e bastante água,
aí estamos nós,
somos água e sal
e conservamos todos aqueles polímeros
muito bem interligados e ordenados,
eu chamo-lhes alfinetes de gel,
mas são mais conhecidos por ADN,
a sigla do ácido desoxirribonucleico

E está tudo gravado nesses alfinetes,
está lá toda a nossa maneira de ser,
estão lá todos os nossos genes,
está lá toda a herança de quem nos fez,
e de quem fez quem nos fez,
e de quem fez quem fez quem nos fez,
e de quem ... e de quem ...
e de quem fez o Adão e a Eva,
resta saber somente
quem voltou a engravidar a Eva,
se o Caim, se o Abel,
tenho para mim
que foi o Caim

Recentemente descobri que o meu curto pescoço
é um alfinete de um dos meus tetravós,
e que sou casmurro, peludo, teimoso
e de mau feitio,
porque esses alfinetes passaram dos meus bisavós
para os meus avós, e nenhum deles abdicou desses pós
do ácido desoxirribonucleico

Mas não me queixo muito desse ácido,
até gosto de quase tudo o que herdei,
só protesto por não ter herdado
a habilidade de um dos meus avós,
eu não vi, mas contaram-me,
ele sabia trabalhar a pedra calcária,
acariciava-a e depois rendilhava-a
com primor,
das suas mãos saíram estátuas de santas
e de santos para o altar-mor,
cúpulas de chaminés,
rosáceas de igrejas e de capelas,
cantarias, degraus e outras obras,
e vejam, das minhas mãos não sai nada,
nada, nem rosas, nem cravos, nem estrelas,
nada, apenas prosas

domingo, 23 de agosto de 2015

Dor

Sofro quando a dor me dói,
também sofro quando a vejo
em alguém a mostrar que dói,
é a mesma dor,
e agora sinto-a, vejo-a,
quase a beijo,
é a dor a massacrar a matéria
de que é feito
o ser humano, um ser que discerne,
mas que é feito de carne perecível,
amarga, efémera,
frágil,
é carne que dói, e que dói ainda mais
quando quer perecer na Primavera

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Deuses

Meu Deus,
estou a ver um filho ao colo a chorar
e uma fronteira para atravessar,
e não acabam as fronteiras,
nem os filhos ao colo a chorar,
fogem das guerras, do horror, 
são imagens cruéis
que ultrapassam as fronteiras da dor

Tudo porque não há paz entre os homens,
e não há paz porque os homens são bichos
guerreiros, surdos, ferozes,
sanguinários, estúpidos,
e tornam-se piores
quando atacam para defender os seus deuses,
ó deuses, sejam mais lúcidos
do que os vossos guerreiros homens,
ó deuses, acordem, falem, apareçam,
celebrem entre vós um acordo de paz celeste
e façam com que os vossos guerreiros vos obedeçam

O quê?
não acredito, não acredito,
dizem-me que os deuses celestes
também andam em guerra,
ó, está tudo perdido!
ó, nem os deuses estão em paz!

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Sempre a viajar

Estou a viajar comigo,
ando a caminhar e a sonhar,
a pensar, a ver, a ansiar,
estou a viajar sozinho,
sem bagagem, a pé, com vagar,
já não quero conquistar o mundo
e não tenho pressa de mergulhar,
também já desisti de ser vagabundo
e de pintar o luar

Ando a andar,
mas agora sento-me à sombra,
o solo está a ferver,
já encomendei uma água com gás,
vou escrever:

«A Terra também anda a viajar,
anda de roda ao redor da sua estrela,
e vai de roda, e vai de roda,
não se cansa a minha Terra,
ai de mim se ela pára,
ai de mim se ela muda de rota,
ai de mim se ela se estatela,
ai de mim se ela se emborca,
ai de mim se ela tem pressa

Até agora, os sinais do céu
sempre me disseram
que a Terra não tem pressa,
mas se ela se apressar,
ao menos que não se estatele,
ao menos que não se emborque,
que mude, antes, de rota,
mas para aonde irá ela?
Irá para os braços de outra estrela?
Será atraída por outra força?

Tanto me faz,
eu irei sempre com ela,
e sabe-se lá!
se ela seguir outra rota,
talvez acabe o mal,
talvez acabe a morte,
talvez estejamos sempre a renascer,
talvez venha a acontecer
o que se reza nas igrejas,
talvez o Paraíso invada a Terra,
e no Paraíso não nos faltarão cerejas
todo o ano,
nem mananciais de água pura, de leite e de mel,
nem o pão

Sim, nós estamos colados à Terra,
somos terráqueos,
mas seria mesmo bom que o Paraíso
nos invadisse,
seria mesmo bom que a Terra fosse o Paraíso,
seria tão bom e seria tão bom que fosse já agora

Informa a TV:

- O Paraíso invadiu a Terra, acabou a guerra,
(notícia de última hora);

- Deixámos de ser terráqueos,
agora somos habitantes do Paraíso,
agora somos ...;

(oh, a TV não sabe como se chamam os habitantes do Paraíso)

- Falsa notícia: o Paraíso não invadiu a Terra
(notícia de última hora);

- Continuamos em guerra
(notícia a toda a hora);

- Meus caros concidadãos,
minhas caras concidadãs,
minha querida gente,
continuamos a ser terráqueos
(comunicação oficial do Sr. Presidente)

Não é bem assim, Sr. Presidente,
nós somos terráqueos,
mas vivemos no Inferno,
sim no Inferno,
porque esse já há muito que invadiu a Terra
(isto escrevo eu, neste caderno)»

Levanto-me, fecho o caderno,
já não faz tanto calor, aí vou eu,
ando sempre a viajar,
sentado, ou em pé,
viajo sozinho comigo,
viajo a imaginar cataclismos,
colapsos, tempestades, vórtices,
vulcões, vertigens, abismos,
maremotos, metamorfoses,
infernos, paraísos,
e não vou parar, nem com fortes doses
de destilados absintos,
agora estou aqui,
mas daqui a pouco estarei ali,
sempre sem pressa, sou assim, sou eu

E se me perder por aí,
basta-me seguir um rio,
se tiver luz,
ou olhar para o céu,
se estiver às escuras,
para, enquanto for eu,
encontrar o caminho das minhas luas

terça-feira, 18 de agosto de 2015

A minha porta

A minha porta dá para a rua,
é uma porta branquinha e nua

Há pouco, bateram à minha porta,
não estava surda,
- trazemos uma boa nova,
estamos salvos, Deus é a cura,
nós somos a sua testemunha

Escutei o que diziam,
também me escutaram,
- Deus salva toda a gente,
ou só salva quem nele acredita?

Despediram-se de mim,
- não perca a esperança
e dê graças à vida
 
Eu dei-lhes pêssegos
e beijos

domingo, 16 de agosto de 2015

Hoje é Domingo

Vestem-se os corpos lavadinhos,
arrumados, perfumados,
bonitinhos, bonitinhos,
vão confessar os seus pecados
e vêm perdoados, purificados,
abençoados,
e mais lavadinhos,
porque hoje é Domingo

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Chamas no dia treze

Comove-me a chama das velas
que bebem parafinas,
comove-me quem de joelhos
as acende com lágrimas
a implorar curas, milagres,
misericórdia

E de que vale a minha comoção?
E de que vale aquela combustão?
As Perseidas

Da janela do meu sótão
distingo a Estrela do Norte,
fixo-a longamente enquanto aguardo as Perseidas,
mas, sem querer, envolvo-me na filosofia do infinito
e mergulho na quinta dimensão,
vejo-me a vaguear pequenino
na abóbada celeste,
vou recostado numa jangada
que é a cama do meu sótão,
uma cama com uma janela mágica,
através dela sou barqueiro,
que me proteja São Cristóvão
nesta jangada sem velas
a viajar neste vespeiro
de planetas e de estrelas

Não falta o ar na minha jangada,
mas perdeu a gravidade,
passo ao lado de Marte
e diz-me que não tem nada,
despeço-me de Júpiter
que me empurra sem piedade
para lá do sistema solar

Ao cruzar a fronteira,
sou parado por uma estrela,
- stop, estás preso, ó barqueiro,
a tua jangada não tem bandeira,
- desculpe, ó Senhora Estrela do Sul,
o Plutão ficou-me com a bandeira,
doze estrelas num fundo azul,
- ah, acredito em ti, como vens da Terra do Sol
deixo-te passar a fronteira

Ainda lhe pergunto por Deus,
o criador do Universo,
não responde, mas dá-me um panfleto
com detalhes do seu Céu,
aí diz que todo o Universo nasceu
de uma violenta explosão após um duelo
entre o hélio e o hidrogénio

E a Estrela do Sul não quis mais conversa,
com uma bojarda estelar
manda a minha jangada
para os caminhos da Via Láctea,
urra, urra,
sou um filho de Hera,
urra, urra,
mamo quanto quero

Mas logo ouço a Estrela Feiticeira
a resmungar:
- há muitas estrelas e estrelinhas,
eu sou a maior,
sou muito mais velha que o teu Sol,
vi-o nascer, ele sempre foi um lingrinhas,
dentro de pouco tempo vou comer o teu Sol,
eh, eh, eh, eh, lol

Fico desanimado na minha jangada,
mas alegram-me as três Marias,
têm nomes estrangeiros, uma maçada,
mas em português chamam-se Marias,
ainda bem,
são a Maria José, a Maria Manuel e a Maria Antónia,
uma torra café, a outra colhe mel e a outra destila ambrósia,
sorriem para mim e desejam-me boa viagem,
ainda me falam numa quarta Maria, uma irmã anã
que quase não se vê,
chamam-lhe Maria Belém

Credo,
vejo uma seta para um buraco negro,
desvio-me abruptamente,
sofro muito de claustrofobia e de vertigens,
tento evitar os cães, o Maior e o Menor,
e abordo as estrelas virgens
da constelação Virgem, que horror!
estão a ser violadas por mártires,
eles são aos milhares a gritar:
á-lá, á-lá, que-bar!

E continuo a navegar,
mas já me falta o ar,
já não consigo relatar mais
do que vi e do que vejo da minha jangada,
assim no Céu como na Terra,
anda tudo em guerra,
é só explosões termonucleares,
as estrelas mais fortes comem as mais fracas
e ressuscitam com mais raiva e mais força,
umas tornam-se novas, outras supernovas,
afinal, o Universo é todo infeliz,
que me inspire o Odisseu,
a quem chamam Ulisses,
quero regressar à dimensão
do meu espaço e do meu tempo

Pum, catrapum, trás,
estourou a minha jangada,
acho que bati no fundo do Norte,
ó!, choquei mesmo com a Estrela do Norte
Ai, ai, ai,
ai a minha cabeça,
bati com ela com tanta força
que até vi estrelas,
uma chuva de estrelas,
serão as Perseidas?

Não são as Perseidas?
Mas onde estou eu?
O que faço aqui?
Ah!, já sei,
levantei-me da cama
e dei uma estrondosa cabeçada
no tecto do sótão,
a minha cabeça está magoada
e pede-me desculpa,
diz-me que acabou de chegar da Estrela do Norte
e ainda não se habituou à dimensão
do espaço e do tempo do meu corpo
e do meu sótão

Não sei o que fazer com a minha cabeça,
anda sempre no ar a viajar
e raramente me leva com ela,
já não tem paciência para me transportar,
foi o que aconteceu esta noite,
eu só queria ver as Perseidas
mas ela quis mais, ela quer sempre mais,
escondeu-me as Perseidas
e foi à Estrela do Norte sem mim,
qualquer dia abandona-me de vez

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A nascente do Lis

Desta fonte escondida
no sopé do meu monte
não corre água fresquinha,
não chora a minha fonte

Secaram-lhe as lágrimas,
não chora a minha fonte,
já me secam as rimas
desta pena de bronze

Mas se há sons no monte,
a cigarra, o zângão,
a sombra, o horizonte,
o calor do Verão

Mas se há sardaniscas
e outros rastejantes,
lagartos, lagartixas,
cobras arrepiantes

Mas se há o alecrim,
o tojo, o rosmaninho,
a silva, o capim,
a ruína dum moinho

Mas se há a branca pedra
da cor da pura neve
onde o calcário medra
e o sol se embebe

Mas se há tanta coisa,
tanto cheiro no ar,
tanta ave a voar,
tanta ave que poisa

Porque não brota água
desta fonte do monte?
- é o monte que a guarda,
diz-me a santa do monte

- Ó Senhora do Monte,
ainda bem que m'atendes,
faz com que esta fonte
liberte os seus duendes

E aguardo um milagre,
ou uma aparição,
mas foi reza em vão,
só veio um milhafre

Que me valham as rimas
e as musas que m'as ditam,
que me valham as ninfas
e a luz que irradiam

Acordem esta fonte,
esta fonte das Fontes,
onde acabam os montes
e o rio Lis desponta

domingo, 2 de agosto de 2015

Recordo

Estou aqui e recordo,
recordo um tempo ido,
recordo o calor, o frio, os fumos,
o carinho, o colo, o abrigo,
recordo o cheiro podre dos fungos
quando se tirava o esterco húmido
dos currais dos fundos
do movimentado pátio

Recordo como a vida corria,
a agricultura de subsistência,
os sons e os cheiros da eira,
a junta de vacas, o burro, as ovelhas,
as galinhas, os leitões na pocilga
que não largavam as tetas
da volumosa marrã aflita,
recordo os coelhos e as suas moléstias,
- ó prima,
unte a coelheira com creolina

Recordo a venda, as tulhas, a taberna,
os pratos da balança, os fregueses,
o cheiro a vinho, a aguardente, a ginebra,
a prateleira dos "Portos", dos "Provisórios",
a bancada das jarras, dos copos,
a gaveta dos trocos,
recordo os bêbedos da aldeia às turras,
recordo a caixa dos lenços, das cuecas,
das meias de vidro, das peúgas,
recordo as mulheres com saias de pregas
e os homens de barrete e de colete
quando regressavam da feira ou do dia treze
a cavalo nos seus burros em trânsito para a Torre,
eles nem desciam das suas montadas
para beberem a sua dose,
aquilo é que eram albardas!

Recordo os dias bons, os dias maus,
recordo o vazio e a falta de esperança
ao ver os irmãos e irmãs partirem
com o peso das malas
para uma estranha França

Recordo agora o que passou,
recordo também esta sala,
era tão acolhedora,
sempre com flores, soalheira,
arrumada e bonita como a dona,
recordo o cheiro do seu chão de madeira
sempre encerado, tinha um ar tão doce

Mas tudo acaba quando tudo abala
e já tudo abalou deste casarão em ruínas,
ficaram apenas os restos desta sala,
as janelas, as cortinas,
a luz do sol, o sítio do relógio,
uma moldura com rostos de meninas,
um calendário com o Santo António,
um fruto de plástico, umas mesinhas
já carcomidas,
focos de caruncho e de pó,
e silêncio, muito silêncio,
um silêncio doloroso,
já não ouço aquela voz

Recordo e choro

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Credo, tanta merda

Metade dos indianos defeca
ao ar livre, li eu nos jornais,
credo, tanta merda!
são muitos cus, nem menos, nem mais,
são quinhentos e noventa
e sete milhões de cus ao léu,
credo, tanta gente
e tanta merda a ver-se do céu

Os indianos obram assim
porque é mais arejado,
dizem uns,
porque não há sanitas,
dizem outros,
talvez só evacuem caganitas,
digo eu

Vão em fila indiana para o descampado,
as mulheres encostam à direita,
os homens à esquerda,
uns escondem o rabo,
outros é logo ali,
ganha quem fizer mais merda
e verter mais chichi

E como defecarão as mulheres
com aqueles vestidos coloridos?
Como limparão elas as fezes
e outros restos dos corpos moídos?

- Ó vizinha, ó vizinha,
eu já não aguento.
não quer vir comigo ao relento,
tenho medo de cagar sozinha

E eis um país que gasta fortunas
a armar um dos exércitos
mais poderosos da Terra,
um país que tem foguetões, pumas,
satélites,
centenas de aviões de combate,
searas de mísseis terra-terra
e terra-ar,
um país que tem o "Buda Sorridente",
sim, tem o "Buda Sorridente",
o nome de baptismo da sua bomba nuclear
armazenada no grosso ventre
de um Buda a arreganhar o dente

E eis um país
que tem mais sei lá o quê,
tem, tem,
mas não tem dinheiro para sanitas,
nem para canalizar a merda,
credo, tanta merda!

domingo, 26 de julho de 2015

Outra Terra

O Homem descobriu outra Terra,
chama-se Keppler 452b,
mas isto é nome que se dê
a um irmão gémeo
que também respira oxigênio?

Chamem-lhe antes Terrão,
é maior que a Terra, tem 385 dias o ano,
chega mais tarde o Verão,
o Natal e a passagem de ano também

Quando vou á aldeia onde nasci,
digo aos amigos,
aos que não têm terra,
que vou à minha terra,
quando se morre é-se enterrado
debaixo de dois palmos de terra,
quando juramos uma verdade,
dizemos que a vimos
com os olhos que a terra nos há-de comer,
tudo o que temos de certo e de errado
tem origem na Terra,
a lata, o latão, os sapatos,
o chapéu, as calças, a samarra,
a água, as armas, os parvos,
o nascer, o viver, o morrer,
o conforto, o alimento,
porra, é tudo da Terra
e tudo o que mexe apodrece na terra,
menos a água e o vento

E há os que fogem da sua terra,
porque aí não são nada,
procuram outra terra,
outro solo, outra madrugada,
onde haja pão, trabalho, liberdade,
uma vida digna, mesmo a chorar
de saudade,
muitos desses perdem a sua terra
e nunca encontram outra,
são os desterrados que se enterram
cada vez mais nesta Terra,
um planeta azul com muitas lágrimas
e onde se prega
que as dores terráqueas
abrem as portas da vida eterna
no etéreo,
onde o chão não tem terra,
só céu

Mas o Homem descobriu outra Terra!
embora para lá, estou farto desta

E alguém diz:
- fica à distância de 1400 anos-luz,
na constelação do Cisne;
- ora bolas,
alguém me traduz
isso em quilómetros?

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Cantiga a um mexilhão

O mexilhão perdeu o "lhão",
perdeu também a sua concha,
está lixado o mexilhão

Foi expulso da sua rocha,
ficou sem lar o mexilhão,
boia à deriva pela costa
a procurar casa e pão,
queria ser uma lagosta,
mas lixaram o mexilhão

Encosta-se a uma lapa,
mas esta não lhe dá a mão,
os percebes não vêem nada,
uma amêijoa diz-lhe que não,
e o mexilhão já é papa,
está comido o mexilhão

Um mexilhão que se mexia
na rocha pra não ser lixado,
ele era assim, não queria
ser sempre ele o quilhado,
pois é mexilhão, melhor seria
estares quieto e calado

Cagou-o na praia a gaivota,
é caca que não caga o chão,
nem borra o pé, nem a bota,
nem sequer é um cagalhão
ele que queria ser lagosta,
coitado do meu mexilhão

E aqui fica este meu canto
a um mexilhão que mexia
por não aguentar o canto
daquela rocha onde crescia
com o fado de ser tutano
de um bivalve que se lixa

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Os reis do petróleo

Pelo-me de medo
quando vejo os rostos
carrancudos dos reis
do deserto,
são façanhudos,
não devem rir,
nunca,
e são pançudos
os seus corpos
sempre envoltos
em sobretudos,
são os reis do crude
que jaz debaixo do deserto
inóspito e rude,
são todos iguais ao original,
o guerreiro beduíno
que tinha cara de mau
e corpo de mé-mé

Esses reis
têm todos barriga de rei,
não como a minha,
(sou o Vitório Rei),
que está quase vazia

E soube agora
que um desses reis,
o mau dos maus,
exigiu a um "maire"
da Côte D'Azur
o encerramento ao público
de uma praia pública
que está junto ao seu palácio
de férias

O "maire" disse que sim,
vai à merda,
ó "maire"