quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Sempre a viajar

Estou a viajar comigo,
ando a caminhar e a sonhar,
a pensar, a ver, a ansiar,
estou a viajar sozinho,
sem bagagem, a pé, com vagar,
já não quero conquistar o mundo
e não tenho pressa de mergulhar,
também já desisti de ser vagabundo
e de pintar o luar

Ando a andar,
mas agora sento-me à sombra,
o solo está a ferver,
já encomendei uma água com gás,
vou escrever:

«A Terra também anda a viajar,
anda de roda ao redor da sua estrela,
e vai de roda, e vai de roda,
não se cansa a minha Terra,
ai de mim se ela pára,
ai de mim se ela muda de rota,
ai de mim se ela se estatela,
ai de mim se ela se emborca,
ai de mim se ela tem pressa

Até agora, os sinais do céu
sempre me disseram
que a Terra não tem pressa,
mas se ela se apressar,
ao menos que não se estatele,
ao menos que não se emborque,
que mude, antes, de rota,
mas para aonde irá ela?
Irá para os braços de outra estrela?
Será atraída por outra força?

Tanto me faz,
eu irei sempre com ela,
e sabe-se lá!
se ela seguir outra rota,
talvez acabe o mal,
talvez acabe a morte,
talvez estejamos sempre a renascer,
talvez venha a acontecer
o que se reza nas igrejas,
talvez o Paraíso invada a Terra,
e no Paraíso não nos faltarão cerejas
todo o ano,
nem mananciais de água pura, de leite e de mel,
nem o pão

Sim, nós estamos colados à Terra,
somos terráqueos,
mas seria mesmo bom que o Paraíso
nos invadisse,
seria mesmo bom que a Terra fosse o Paraíso,
seria tão bom e seria tão bom que fosse já agora

Informa a TV:

- O Paraíso invadiu a Terra, acabou a guerra,
(notícia de última hora);

- Deixámos de ser terráqueos,
agora somos habitantes do Paraíso,
agora somos ...;

(oh, a TV não sabe como se chamam os habitantes do Paraíso)

- Falsa notícia: o Paraíso não invadiu a Terra
(notícia de última hora);

- Continuamos em guerra
(notícia a toda a hora);

- Meus caros concidadãos,
minhas caras concidadãs,
minha querida gente,
continuamos a ser terráqueos
(comunicação oficial do Sr. Presidente)

Não é bem assim, Sr. Presidente,
nós somos terráqueos,
mas vivemos no Inferno,
sim no Inferno,
porque esse já há muito que invadiu a Terra
(isto escrevo eu, neste caderno)»

Levanto-me, fecho o caderno,
já não faz tanto calor, aí vou eu,
ando sempre a viajar,
sentado, ou em pé,
viajo sozinho comigo,
viajo a imaginar cataclismos,
colapsos, tempestades, vórtices,
vulcões, vertigens, abismos,
maremotos, metamorfoses,
infernos, paraísos,
e não vou parar, nem com fortes doses
de destilados absintos,
agora estou aqui,
mas daqui a pouco estarei ali,
sempre sem pressa, sou assim, sou eu

E se me perder por aí,
basta-me seguir um rio,
se tiver luz,
ou olhar para o céu,
se estiver às escuras,
para, enquanto for eu,
encontrar o caminho das minhas luas