sexta-feira, 5 de junho de 2015

Brincar com o fogo

Num dos meus sonhos de criança
vi um clarão e ouvi um trovão:
"sou o deus Thor,
porque dormes? levanta-te e anda,
anda brincar com o fogo"
depois lançou-me um archote,
um tição, um martelo,
paveias de caruma e de tojo
e muitas achas de bacelo

Por isso,
cresci a brincar com o fogo

Na lareira da minha avó
queimava folhas de oliveira,
elas ainda tentavam levantar voo
sobre as brasas, sobre as chamas,
mas caíam sempre na fogueira,
coitadas, perdiam o fôlego

E os fósforos, ai os fósforos,
tenho um fascínio pelos fósforos,
adoro a sua cabecinha vermelha e cega,
adoro a cor da chama que salta dos poros
dessa cabecinha incendiária quando se esfrega
na rugosa lixa da caixa
feita à medida do pau onde se espeta,
adoro os cheiros a enxofre e a pólvora
que inalam dessa acendalha,
e mais um sopro, e mais uma labareda,
viva a fogueira a crepitar, a brasa não demora
para o grelhado

Uma vez tentei fazer um foguetão,
dez fósforos atados com um cordão
eram a sua propulsão,
não subiu, nem estalou,
mas quase incendiava o palheiro,
este meu projéctil falhou
e desisti de ser engenheiro

Nunca mais vi o deus Thor,
mas adoro-o

Sim, adoro-o,
por ele, ateio fogos,
por ele, sou incendiário,
vê-se nos meus olhos,
mas atenção, não incendeio florestas,
não gosto de grandes fogos,
só gosto daqueles que não trespassam as arestas
da minha aura,
daqueles que posso apagar ou reacender
conforme o desejo da minha alma

E, tal como as folhas de oliveira,
também tento voar sobre as achas
que ardem, que queimam, que não se apagam,
por vezes, esse voo é uma brincadeira,
o fogo brilha e só alumia, não queima,
mas por vezes caio nele e queimo-me,
depois queixo-me e grito,
grito porque sinto aquela dor atroz
de quem se queima, de quem se deixa arder,
de quem se imola,
"tem cuidado, não brinques com o fogo,
é muito perigoso"
bem me aconselhava a minha avó

Nunca mais vi o deus Thor,
mas sonho com ele,
sonho que ele virá visitar-me outra vez,
virá ver-me a arder numa cripta ardente
e gritará ao meu ouvido
"acorda, levanta-te, anda brincar com o fogo",
mas eu já não o verei, nem o ouvirei,
nem a ele, nem aos que estarão a conduzir o rito
da fogueira que me consumirá sem dor

Porventura, nunca mais verei o deus Thor