sexta-feira, 10 de abril de 2015

O meu amigo do peito

O meu amigo gosta de me ver,
admira os meus bons ares,
enquanto eu escrevo poemas de enternecer,
ele trauteia cantigas populares,
é mesmo assim, ao entardecer,
na esplanada do Tavares

Ele diz que eu tenho mais jeito
para cavar para batatas
e para andar à frente das vacas,
é um querido, este meu amigo do peito

Mas faz-me rir, o meu amigo,
diz que pode ser conde,
mas não pode ter um palácio,
faz-me chorar o meu conde
quando diz que é meu amigo

O meu amigo é deste mundo,
queixa-se da falta do que é material
e anda sempre a ir ao fundo,
o que tu precisas é de ajuda espiritual,
digo-lhe eu quando mostro o trunfo

Sim, jogamos às cartas, à bisca,
discutimos a defesa do Benfica,
mas que grande seca,
digo eu à minha camisa,
mas o meu amigo não despega

Hoje não quero ir para casa,
diz-me o meu amigo, depois
de uma tarde ao balcão da tasca
a beber finos e a comer caracóis,
tenho medo do rolo da massa

Vai, vai para casa, amigo,
enrola-te no sofá, ou põe-te à janela,
vê a TV, escuta bem o crítico
da bola e segue a telenovela,
tenta entender o político

Vai, vai para casa, amigo,
e sempre que precisares de mim,
chama-me, vou contigo preencher o vazio,
vamos dizer que a vida é assim:
somos regato quando nascemos,
levezinhos, puros, sem fastio,
ainda com pouca voz,
depois crescemos e crescemos,
ficamos pesados, amargurados, com frio,
ficamos assustados de ficarmos sós,
de enlouquecermos,
a vida é assim, o nosso regato é agora um rio,
um rio lodoso quase a cair na foz