segunda-feira, 13 de abril de 2015

Catacumbas

Hoje acordei revoltado comigo e com o mundo,
hoje acordei em Yarmuk,
acordei em Sana'a, em Alepo, em Gamboru,
acordei nas favelas do Rio,
nas vallas de Ceuta e Melilla, em Lampedusa,
hoje acordei na rua, tenho fome e frio,
estou a precisar de uma milagrosa dose
para acabar com esta minha alergia e tosse

Por isso,

Não me acompanhem nesta viagem ao surreal
sem nexo, apetece-me sofrer, dizer mal,
apetece-me gritar, correr, mexer no essencial
dos valores e pintar a miséria da cor da cal,
assim mesmo, branquinha, para não se distinguir
da opulência imaculada, da vaidade, do rico a fingir
que paga a sua dízima para alimentar as chusmas
de famintos, os desgraçados que vivem nas catacumbas

Não me acompanhem nesta viagem, fiquem quietos,
e se não gostarem de me ver a afogar na tristeza,
apaguem-me, depositem-me no lixo onde voam insectos
ávidos de odores fedorentos e de mórbida beleza,
esbofeteiem-me, mudem de página, carreguem-me de fetos
viçosos, esses seres vivos que são o maior feito da natureza,
nunca esmorecem, são fortes e verdes e gostam das chuvas,
reproduzem-se muito e bem, servem de lençóis nas catacumbas

Túneis e túneis, penumbras, fedores,
ratos, merda, salamandras, urina,
nas catacumbas movem-se os bolores
dos dejectos da vida que há por cima,
vida disforme de dor, vejam os horrores
das guerras, dos genocídios, quem domina
tem força e poder para matar as pombas,
são os alimentadores das catacumbas

Ricos, pobres, raças, gente adoradora
de deuses inventados para convencer
um corpo ressequido que não chora,
nem grita, nem come, quer só morrer
para não sofrer das mordeduras do frio
que se injecta de noite no seu corpo esguio
e inerte, quase habitante das húmidas tumbas,
mais húmidas do que o escuro das catacumbas

Imundícies de lodo e de esterco,
voam abutres, seguem as hienas,
procuram corpos, fazem o cerco,
este corpo não que tem penas,
não fede a podre, está fresco,
não tem tripas, nem gangrenas,
eles são os comedores de carne podre
e cheiram a catacumbas, cheiram a fedor

Corpos gelados sem calças, sem meias,
morrem desdentados os dependentes
de drogas que endurecem as veias,
não tinham pasta para os dentes,
nem para sustentar as alcateias
de fornecedores de entorpecentes,
estes são demónios a dançar rumbas
e a empurrar incautos para as catacumbas

Torrentes subterrâneas de vapores
pestilentos que enlameiam as condutas
de respiração deste planeta de cores
pálidas de tanta lixeira de restos de frutas
e de merda fabricada nos ventres dos senhores
capitalistas donos de escravos e das suas brutas
senhoras que se vestem de ouro e de ricas plumas,
eles e elas cheiram pior que as catacumbas

Não, não me acompanhem nesta viagem ao surreal
sem nexo, apetece-me afundar no pantanal
cheio de répteis famintos a mostrarem os dentes,
não me acompanhem, fiquem dormentes,
a guerra está longe, a fome também, mas depressa
chega ao nosso quintal, à nossa despensa,
pois eu estou a sofrer pelas nossas misérias imundas,
pelas guerras, e não tenho forças para limpar as catacumbas