sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O meu nascimento visto por mim

Havia um lugar perdido num planalto calcário de uma serra situada entre o Tejo e o Lis que não tinha electricidade, nem estradas, só caminhos de terra, de lama e de cascalho. Quando chegou o saibro, foi um enorme progresso.
A Senhora Maria acordou naquela manhã de Outubro muito atarefada. Mas as dores de parto vieram mais cedo do que o previsto e a sua boca do corpo estava a dilatar de uma forma tão constante e dolorosa que só lhe restou deitar-se na varanda da sua casa e começar a gritar para alguém que passava na rua para chamar a Ti Pliquéria.
A Ti Pliquéria tinha bigode e era destemperada, mas o certo é que não havia criança nascida naquele lugar, e nasciam muitas, que não tivesse sido arrancada por ela às entranhas das mães. 
E a Ti Pliquéria veio a correr para socorrer a Senhora Maria. Entrou em sua casa e encheu logo um alguidar de barro com água quase a ferver que retirou da panela de ferro que estava sempre ao lume. De seguida, abriu uma arca da roupa e tirou algumas toalhas de linho e, com essas toalhas e com a água a ferver, prantou-se junto à cama onde jazia a Senhora Maria e começou a dar ordens:
- Abre as pernas.
- Faz força e respira fundo.
- Não te preocupes se te borras toda, eu limpo.
- Continua a fazer força, faz força, não te vás abaixo, não é agora ao quinto que vais desistir.
E a Ti Pliquéria já estava a ver o caso mal parado. 
- Alguém que chame a tua comadre Sapateira para me ajudar, mas não deixes de fazer força.
E os alguidares de água quente e as toalhas de linho andavam numa reviravolta que só visto.
- A lareira precisa de mais lenha. E o canto da lenha está vazio, porra. Faz força, porra.
Gritou a Ti Pliquéria.
De repente, é expulso do corpo da Senhora Maria um ser vivo todo ensanguentado e escamoso, tendo passado pelo canal uterino sem ter dado por isso, tal eram aquelas engrenagens.

E a Ti Pliquéria agarrou-me pelo pescoço
e virou-me de pernas para o ar
e gritou, e gritou,
"temos mais um moço
e ouçam, e ouçam, já começou a berrar"

E juntaram-se logo as avós

e outras velhas,
todas cobertas com negros xailes,
e acenderam velas ao Santo António,
ao São João, e a outros que tais,
e tinham água benta contra o demónio
e terços e crucifixos e santinhas
e rezaram e não pararam de se benzer
e de pedir às alminhas
para protegerem o novo ser
e que não lhe falte nadinha
desde o seu amanhecer
até ao seu anoitecer

E eu assim já nascido

ouvi clamores e orações
e esperança e júbilo
e promessas e aflições
e a Ti Pliquéria a gritar
"chamem depressa o Doutor Júlio"
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Meus caros leitores, hoje faço anos.
Mais informo que suspendo aqui estes relatos de uma existência. São cento e cinquenta. Desfrutem. 
Voltarei com mais relatos, mas não sei quando.
Obrigado por me lerem e não se esqueçam de respirar.