sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O açúcar

O açúcar é doce e adoça,
e é tão bom o açúcar,
uma madalena, um queque, uma torta,
um jesuíta, um bolo de arroz, um folar,
um bom-bocado, uma tíbia, um caracol,
um pastel de nata, de feijão, de Tentúgal,
uma trouxa, um travesseiro, um ovo mole,
ai esta doçaria de Portugal,
e um bolo-rei, e um bolo-rainha,
e engole, e engole, e engole,
e sabe tão bem esta fatiazinha
de entremeio de ananás,
e sabe tão bem esta vianinha
barrada com compotas
de morango e de maracujá,
ai que sabe tão bem, ó vizinha,
e engordo, e engordas,
e engordamos a comer açúcar,
e ai a diabetes e as aortas
cheias de colesterol e de âmbar
e as tromboses e as enxaquecas
e a tensão alta e o mal-estar
e a corrida às panquecas
sem açúcar, só com erva-doce
e canela, e aos chás de cidreira
e de tília e de camomila,
mas agora venha uma barriga-de-freira
e um papo de anjo e um arroz-doce
e um leite-creme, e um suspiro,
ai que bom este açúcar com claras,
e venha também uma vichyssoise
para desenjoar,
e depois um palmier, e um duchaise
a transbordar de chantilly,
e um pão-de-ló e um pudim
na forma de alumínio,
e uma bavaroise de ananás,
e quase não sobra nada para mim,
e um doce de natas com palitos la reine,
e um molotov e umas farófias,
e filhoses e sonhos e coscorões
e rabanadas e bilharacos e tigeladas,
e tudo para enfardar aos encontrões,
e não te encolhas, e não te encolhas,
e, para terminar, um mil-folhas
e depois bebam muito chá de funcho,
ou de hortelã,
e respirem fundo, e respirem fundo,
senão ainda acordam com a cama
recheada de Encharcada do Convento
de Santa Clara,
mas não desistam, o açúcar é tão doce
e combina tão bem com tudo, com o quente,
com o frio, até com o agridoce,
ai é tão bom o açúcar, o mascavado bruto,
o refinado branco, granulado ou em pó,
e também o xarope para a tosse,
e o açúcar é tão bom e combina tão bem
com tudo, até com o champanhe,
com o cacau e com o conhaque,
e a tombar, e a cambalear,
lá vamos para a cama
dormir, talvez sonhar

Esperem,
não adormeçam já,
quero que fiquem ainda a saber
que, por causa do açúcar,
deste açúcar tão doce,
deste açúcar tão bom,
fiquei furioso, amargo,
pior que estragado,
quando me disseram
que quem corta e apanha
a cana,
a cana que dá o açúcar,
vive num barraco,
e é quase escravo,
ganha menos que um chavo,
e ainda paga a renda do barraco
à patroa,
que é rica, muito rica,
merda,
isto tem mesmo que ser assim?
merda,
revoltem-se ó escravos,
não sejam parvos,
matem a patroa,
dêem-lhe com força com a podoa
e vendam vocês a cana e o seu suco,
o suco do açúcar bruto
que me é servido refinado e branqueado

Pronto, já disse tudo,
podem adormecer

Boas festas