terça-feira, 24 de março de 2015

Os ossos de Cervantes

Ó vós que tendes como ossos do ofício
mexer nos ossos dos outros,
não me temais, venho em paz e sou pacífico,
sou o espírito de Miguel de Cervantes,
estou no céu há muitos anos
e estou em paz com a minha Dulcineia,
por isso, imploro por Deus a todos vós,
não mexam nos meus ossos,
não quebrem esta teia
de filamentos de ouro
que me agarra à vida eterna dos errantes
cavaleiros que procuram um tesouro
escondido nas entranhas dos amantes

Não, não mexam nos meus ossos,
ainda ressuscitam Sancho Pança,
o meu escudeiro de confiança
e mestre dos preguiçosos,
o escudeiro mais gordo
e mais inteligente de toda a Espanha,
que comia tudo o que lhe davam como refeição,
ao contrário do seu amo que era só pele e osso,
o D.Quixote de la Mancha, um colosso,
um cavaleiro andante que morreu de paixão

O Sancho Pança
também vive aqui no céu
e está sempre a dormir,
mas ai de mim se ele acorda,
fará um grande escarcéu,
só se calará quando for governador da sua Ínsula,
e já não lhe basta uma pequena,
tem que ser uma grande, uma Península

Não, não mexam nos meus ossos
que eu digo-vos onde está o famoso
cavaleiro da triste figura,
o D. Quixote de la Mancha,
ele também vive no céu,
mas há muito que o não vejo nesta planura,
deve andar em viagem pela Mancha,
dizem que o têm visto por lá com o seu elmo
e com a sua armadura,
coitada dessa amável criatura,
se andar por lá tem que andar a pé,
o seu Rocinante morreu de anemia
e não teve lugar no céu,
tinha a alma vazia

Não, não mexam nesses ossos,
os meus ossos,
eles já estão muito porosos,
armem-se antes em quiromantes
e mirem só as minhas mãos
que estão nesse fosso
e digam-me: será que voltarei a ser Miguel de Cervantes
de carne e osso?