terça-feira, 22 de abril de 2014

Eles dormem de noite na calçada

Digam-me, se souberem,
por que razão se chama noite
àquela parte do dia
em que o sol se esconde
lá para os lados do poente
e ficamos sem o seu brilho

Mas ainda bem que a noite escura
nem sempre dura,
porque o dia volta de novo
quando o sol se levanta pleno de vigor
e espalha os seus raios de luz e de calor,
iluminando e aquecendo a parte do dia
que não se chama noite

E então vivemos mais um dia
em reboliço, com azáfama,
até que o sol volte a partir
e apague a sua chama
para que não se saiba onde vai dormir

E volta a noite
e outra vez a escuridão,
e ouvem-se vozes desencontradas
de corpos vazios cheios de solidão
que encontram sonhos nas calçadas
e que têm trapos de cartão como lençol,
dormem assim, no chão, enroscados
e quando amanhece já estão acordados,
o seu despertador foi a luz do sol

Eles dormem de noite na calçada,
na calçada é mais fácil dormir de noite,
se dormirem aí de dia, correm mais perigo
de ficar sem o seu cantinho, sem o seu abrigo,
porque nos choca mais olhar em plena luz do dia
para o seu corpo assim deitado e embrulhado,
porque é uma imagem mais nítida da miséria
e que denuncia, sem rodeios, a nossa hipocrisia
enquanto membros de uma sociedade dita solidária,
por isso eles preferem dormir de noite na calçada,
porque escondem melhor o seu corpo, o seu olhar,
a sua aflição, a sua desgraça

Mas eles aguentam, eles sobrevivem,
eles não se queixam,
talvez porque a noite os ajuda
a transformarem-se em vultos,
em fantasmas, em sombras da lua,
em intocáveis, em impolutos,
em imateriais, em nadas,
talvez porque sonham que têm asas
e que levantam voo para um vazio
cheio de conforto, cheio de paz,
e enquanto sonham não sentem o frio,
a chuva, ou as dores das ressacas,
será que eles não têm medo de acordar?