sexta-feira, 16 de maio de 2014

A queima das fitas e a fita da minha filha

Olá, filha,
gostava de te te oferecer uma fita
escrita a tinta de oiro
e que fosse cortada de um pano de linho
tecido com fios tirados da dobadoira
da senhora tua bisavó que foi a minha avó
e que me deu tanto mimo

Quero que saibas
que essa senhora tua bisavó
era de tez escura e de rosto enxuto,
carregava pobreza e amarguras
e cobria-se de um pesado luto
pelo desaparecimento prematuro
do pai dos seus cinco filhos,
quase todos ainda por criar,
que, momentos antes de morrer
na sua cama de lençóis de linho,
ainda trejeitou um último esgar
e pediu que lhe dessem de beber
um copo de vinho,
e morreu sem o beber,
não porque não tivesse ainda fôlego,
mas porque ninguém lho deu,
e foi-se para o eterno aconchego
sem o cheiro do vinho,
sem o cheiro daquilo que o matou
mais cedo

Isto disse-me a tua avó
que era a minha mãe
e que tu conheceste bem
e que também me disse
que a tua bisavó que era sua mãe
não queria morrer sem ver o mar,
e morreu sem ver o mar

Ficas também a saber
que a tua avó
que era a minha mãe
segredou-me também
que não queria morrer
sem saber ler nem escrever,
e morreu sem saber ler nem escrever,
e isto digo-te eu que sou teu pai

Ofereço-te, pois, esta fita
de cetim, ou de seda, como queiras,
e peço-te que a guardes para ti
e, por saberes ler e escrever,
até em línguas estrangeiras,
faz com que os teus antepassados
que morreram sem ver o mar
e sem saber ler nem escrever
não venham a saber um dia,
lá na eternidade,
que tu não aproveitaste o teu saber