terça-feira, 13 de maio de 2014

O Auto das Tendas dos Milagres


Um tendeiro fora da lei
Cheguem-se aqui, curo todos os males,
cheguem-se aqui, faço mais barato,
desde a inveja ao mau olhado
até aos bichos caranguejos
nas tripas,
nada escapa aos meus gargarejos,
às minhas magias,
ao meu revigorante muco de lesmas,
ao meu pau-de-cabinda,
ao meu creme para eczemas,
ao meu bálsamo da Índia ...

Um polícia das tendas
O senhor é um impostor
e está a brincar com a dor,
só cura por milagre
quem é santo, ou santa,
ou quem tem um mandato
para ser candidato
a santo ou a santa,
e os santos e as santas
não cometem pecados,
pelo menos depois de santificados,
e o senhor não é santo,
nem candidato a santo,
está sempre a pecar,
por isso ponha-se a andar
e deixe a tenda livre para aí abancar
quem tem poderes para curar

Uma tendeira dentro da lei
Compre aqui uma vela
na minha bancada
que está muito perto
do sítio das visões,
com uma vela de cera a arder
e muitas orações
a cura é garantida,
e a vela arde e não se consome,
é ecológica,
arde e não se consome
e volta a ser vela
que volta a arder
e só se consome a mecha,
compre-me uma vela de parafina
que arde e não se consome,
é cura garantida,
menos para a fome

O coro
Não via e já vejo,
não andava e já ando,
tinha um bicho caranguejo
e já não o tenho,
não ouvia e já ouço,
não podia e já posso,
milagre... milagre

Eu
Quem sabe se não é mesmo assim:
primeiro, as aflições;
depois, uma promessa;
e uma vela;
e muitas orações;
e uma esmola;
e mais orações;
e mais promessas;
e mais esmolas;
e mais velas a arder;
e um milagre e mais outro milagre

O coro
É a fé, é a fé,
e a fé vence tudo,
menos a miséria e o azar

Outra vez eu
Quem me dera ter a humildade
de acreditar em aparições,
de acreditar em milagres,
de acreditar em visões,
de acreditar em imagens,
de acreditar em rituais,
quem me dera não ter dúvidas

O coro
Não via e já vejo,
não andava e já ando,
tinha um bicho caranguejo
e já não o tenho,
não ouvia e já ouço,
não podia e já posso
milagre... milagre

Um transeunte sem fé
e que não sabe o que se passa
C'um raio,
nunca vi tanta gente junta,
quase desmaio,
e tanta tenda a vender velas
e estátuas de defunta,
c'um raio,
tanto xaile preto, tanto pranto,
tanta cantoria, tanto ai,
tanto lenço branco,
parece que estão a acenar
a alguém muito importante

Um pagador de promessas
Ó Nossa Senhora,
aceita esta minha humilde esmola
(e deposita uma nota de cinquenta euros
na caixa receptora),
não tenho emprego
e preciso da tua ajuda,
não me abandones, tenho medo,
tenho fome e família e a vida é dura,
o que vai ser de nós sem a tua ajuda?

O coro
É a fé, é a fé,
a fé vence tudo,
menos a miséria e o azar,
mas esta fé
tem mais valor
porque veio a pé
de muito longe

O criado que limpa o local onde ardem as velas
Hoje esta pá
está-me mais pesada,
e estou sozinho
a limpar esta massa
de cera derretida
que cheira a borras de vinho,
mas que grande porcaria,
eu aqui sozinho
a limpar esta fossa
cheia de parafina ardida,
e ainda por cima é tóxica,
ai os meus pulmões,
ai a minha vida,
e por isto só recebo cinco tostões

O coro
É a fé, é a fé,
e a fé vence tudo,
menos a miséria e o azar

O contador das esmolas
Hoje esta pá
está-me muito pesada
e é tanta moeda para arrecadar
que isto só lá vai com muitas pazadas,
mas que grande quantia,
e as notas já foram arrecadadas
em grossos maços de papelão,
mas que grande quantia,
e eu com a minha carteira vazia,
mas que grande tentação

O coro
É a fé, é a fé,
e a fé vence tudo,
menos a miséria e o azar,
e deixa-te de tentações
ó contador de esmolas,
cala-te e toca a contar
e a encher as padiolas

Uma nota de cinquenta euros
Mas onde é que eu estou?
já não estou na carteira
que cheirava a sebo
e onde não tinha companheira,
agora estou embalada
num pacote com selo,
para aonde me irão levar?
já estou parada,
ouço vozes, estou num banco,
estou depositada
junto a muitas outras notas
iguais a mim, com as mesmas siglas,
mas onde estarei?
ah, ouvi agora,
estou num banco das Caraíbas

Outra vez eu
Quem me dera ter a humildade
de acreditar em aparições,
de acreditar em milagres,
de acreditar em visões,
de acreditar em imagens,
de acreditar em rituais,
quem me dera não ter dúvidas

O coro
É a fé, é a fé,
e a fé vence tudo,
menos a miséria e o azar

Fim